segunda-feira, 7 de abril de 2025

 


o mundo, a bola, o rádio
o velho e o mar
o cinema
eu e meu avô
[«que nadie me mida el corazón»]


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«enilton, enilton, aquele que anda nu pelo mundo, nu de roupas e até de pele.. anda pelo mundo em carne viva... esse teu andar pela vida em carne viva... dói na carne de quem te segurou no colo ao nascer, pois... não é literatura, é vida mesmo... »

maria elizabeth gastal fassa

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«como fica forte uma pessoa, quando está segura de ser amada.»

freud

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«sinta mais, pense menos»

bukowski

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a função da arte / 1

diego não conhecia o mar. o pai, santiago kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. viajaram para o sul. ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. e foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. e quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- me ajuda a olhar!

eduardo galeano

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sangrando

houve uma época que esperava ansioso o domingo pela manhã.
era uma época boa e as coisas bem mais fáceis do que são e do que estão.
nessa época, o campeonato italiano era transmitido pela rede bandeirantes de televisão.
o tempo passa... hoje as coisas estão bem mais difíceis e o futebol, pra mim, perdeu a graça.
nessa época, quando maradona jogava no nápoli, eu tinha 18 anos e pra mim não houve outro maradona como aquele maradona do nápoli.
digo isso, pois gostava tanto de futebol que vivia o enredo de uma partida como se fosse a minha própria vida. e era. maradona me ensinou a nunca desisitir. rir e chorar. cair e levantar. passo a passo, sem outros escudos além dos nascidos da minha própria voz.

grill

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quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda
que, palavra por palavra, eis aqui uma pessoa se entregando
coração na boca, peito aberto, vou sangrando
são as lutas dessa nossa vida que eu estou cantando

quando eu abrir minha garganta, essa força tanta
tudo que você ouvir, esteja certa que estarei vivendo
veja o brilho dos meus olhos e o tremor nas minhas mãos
e o meu corpo tão suado transbordando toda a raça e emoção

e se eu chorar e o sal molhar o meu sorriso
não se espante, cante, que o teu canto é a minha força pra cantar
quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda
é apenas o meu jeito de viver o que é amar

sangrando | gonzaguinha (1980)

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quando fui pai de meu irmão

por frei betto

há episódios que marcam definitivamente nossas vidas. no meu caso, meia dúzia deles: duas prisões sob a ditadura militar; o ofício de escrever; a recusa de embolsar dois milhões de dólares em troca de uma informação que não causaria prejuízo a ninguém; o modo como livrei meu irmão do inferno das drogas; a trágica morte de tancredo neves.

todos esses episódios estão relatados em meu mais recente livro: «quando fui pai de meu irmão – o desafio é sempre imprimir sentido à existência» (alta books/70).

antônio era o caçula de oito irmãos. quando nasceu, eu já estava de malas prontas para trocar belo horizonte pelo rio de janeiro. aos 12 anos, amigos o iniciaram nas drogas. aos 16, sofreu grave acidente de moto que comprometeu a parte lógica do seu cérebro. aos 20, recebi-o em são paulo para assegurar a nossos pais alguns dias de tranquilidade.

conviver com uma pessoa adicta é viver em permanente sobressalto. a estadia comigo, programada para durar 10 ou 15 dias, se prolongou por cinco anos. tornei-me pai do meu irmão. sofri mais que nos quatro anos de prisão. e amei como jamais fiz, faço ou farei. cinco anos depois ele retornou “limpo” a belo horizonte.

embora antônio tenha tido todos os cuidados terapêuticos, aprendi que uma pessoa se torna adicta por carência afetiva. entra pela porta do desamor e só sai pela do amor. cuidados médicos, medicamentos, internações periódicas são necessários. mas é o se sentir amada que a faz emergir da escuridão à claridade.

é muito difícil amar sem imediata reciprocidade. e o adicto suga-nos o afeto antes de poder dar algo em troca. aliás, todo viciado em drogas é um místico em potencial. quer plenificar sua subjetividade. a diferença é que ele entra pela porta do absurdo; o místico, pela do absoluto.

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maradona eterno

por eduardo galeano

jogou, venceu, mijou, perdeu. houve estupor e escândalo. os trovões da condenação moral ensurdeceram o mundo inteiro, mas mal ou bem se fizeram ouvir algumas vozes de apoio ao ídolo caído. afinal de contas, julgá-lo era fácil, e era fácil condená-lo, mas não era tão fácil esquecer que maradona vinha cometendo há anos o pecado de ser o melhor, o delito de denunciar de viva voz as coisas que o poder manda calar e o crime de jogar com a canhota, que segundo o pequeno larousse Ilustrado significa “com a esquerda” e também significa “o contrário de como se deve fazer”.

diego armando maradona nunca tinha usado estimulantes, nas vésperas das partidas, para multiplicar seu corpo. é verdade que se metera com cocaína, mas se dopava em festas tristes, para esquecer ou ser esquecido, quando já estava encurralado pela glória e não podia viver sem a fama que não o deixava viver. jogava melhor do que ninguém, apesar da cocaína, e não por causa dela. maradona carregava uma carga chamada maradona, que fazia sua coluna estalar. “necessito que me necessitem”, confessou, quando já tinha há muitos anos o halo na cabeça, submetido à tirania do rendimento sobre-humano, intoxicado de cortisona, analgésicos e ovações, acossado pelas exigências de seus devotos e pelo ódio dos que ofendera. o prazer de derrubar ídolos é diretamente proporcional à necessidade de tê-los.

na espanha, quando goicoechea pegou-o por trás e sem a bola e o deixou fora das canchas por vários meses, não faltaram fanáticos que carregaram nos braços o culpado deste homicídio premeditado, e em todo o mundo não faltaram pessoas dispostas a comemorar a queda do arrogante argentininho intruso nos píncaros, o novo-rico que tinha fugido da fome e se dava ao luxo da insolência e da fanfarronice.

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entrevista realizada por el dr. marlon becerra para la tv colombiana.

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maradona - volviendo

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a vida é uma loteria
de noite e de dia
la vida es una tómbola
y arriba y arriba

la vida tombola | manu chao, 2007

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recordar: do latim re-cordis. voltar a passar pelo coração.

me lembro uma vez em santa vitória, quando fraturei a bacia. férias do colégio. verão. todo mundo na praia. o médico recomendou cirurgia ou repouso absoluto. repouso absoluto. me comprometi e cumpri. eu tinha 9 anos. fiquei dois meses sem me mexer.

em santa vitória naquela época não havia sinal de tevê. meu avô, penalizado com a minha situação, me mandou de presente um transglobe.

transglobe era um super rádio. «pegava» tudo... chuí, santa vitória, pelotas, porto alegre, são paulo, rio de janeiro, montevidéu, buenos aires... ó mundo, ó mundo ... meu rádio era maior que o mundo.

talvez isso explique um pouco eu ser como sou. eu fui criado ouvindo rádio e o mundo que sai de dentro do rádio não é exatamente o mundo como ele é. quando a gente é criança a gente imagina o mundo como quer, o transglobe, por exemplo, eu imaginava muito maior do que ele é.

acho que tudo se mede, menos o coração. o quintal onde a gente brincou, por exemplo, é maior do que o mundo. a gente só descobre isso depois de grande. a gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido menos pela distância e mais pela intimidade (que temos com elas). há de ser como acontece com a saudade.

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mi abuelo me dijo la otra vez
me dijo mi abuelo que tal vez
su abuelo le sepa responder
si el tiempo es mas largo cada vez

la casa de al lado | fernando cabrera, 1993
intérpretes: fernando rossini y juan rodriguez
(letra completa na área de comentários)

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o velho e o mar

dentro só havia uma cama, uma mesa, uma cadeira e um canto no chão sujo, onde se podia cozinhar a carvão.
- o que você tem para comer? - perguntou o garoto.
- uma panela de arroz com peixe. quer provar?
- não. vou comer em casa. quer que acenda o fogo?
- não, não é preciso.
- posso levar a rede?
- naturalmente.
não existia nenhuma rede e o garoto se lembrava muito bem de quando a tinham vendido. mas esta era uma cena que repetiam todos os dias. também não havia nenhuma panela de arroz com peixe e o garoto também sabia disso.
- por que não se senta à porta para apanhar sol?
- sim, tenho aqui o jornal de ontem e vou ler as notícias do beisebol.
o garoto não sabia bem se o jornal de ontem também era uma fantasia, mas o velho o tirou de debaixo do colchão.
- foi o pedrito quem deu para mim no botequim - explicou ele.
quando ele voltou, mais tarde, o velho santiago estava dormindo e o sol já começava a baixar no horizonte. o garoto foi buscar a velha manta da cama e colocou-a sobre os ombros do velho. eram ombros estranhos, ainda poderosos embora muito velhos, e o pescoço também era ainda muito forte. não se viam tanto as rugas quando estava dormindo assim, com a cabeça descaída para a frente. a camisa havia sido remendada tantas vezes que mais se assemelhava a uma vela, e os remendos, sob a ação do sol, tinham-se esbatido em diversos tons. a cabeça do velho era muito velha e, com os olhos fechados, não havia vida no seu rosto. tinha o jornal estendido nos joelhos e o peso do braço impedia que a brisa da tarde o levasse. estava descalço.
o garoto deixou-o ficar como estava e afastou-se, mas, quando voltou, o velho continuava dormindo.
- acorde, meu velho - disse o garoto, pondo a mão sobre um dos seus joelhos.
o velho santiago abriu os olhos e, durante um momento, deu a impressão de voltar de algum lugar distante, muito distante.

ernest hemingway

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mãe, tire este distintivo de mim
não posso mais usá-lo
está ficando escuro, escuro demais para enxergar
sinto como se estivesse batendo na porta do céu

knocking' on haven's door | bob dylan, 1973

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de volta ao começo
(«se puderes olhar, vê; se puderes ver, percebe»)

às vezes tu sabe que as coisas têm que mudar, que vão mudar, mas tu só consegue sentir, tu não sabe de maneira premeditada. pequenas coisas prenunciam o que tá vindo, mas tu não consegue identificá-las. porém, então algo instantâneo acontece, e tu vai pra outro mundo, dá um salto rumo ao desconhecido, tem uma compreensão instintiva daquilo --- tu fica livre. não precisa fazer perguntas, e já sabe quais são as respostas. às vezes é preciso que alguém te mostre o caminho...

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cinema paradiso · subtitulado al español (4:48)

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«madre, ¿por qué todos tienen casa menos nosotros?» y sara le respondió: «ellos son pobres porque solo tienen una casa, nosotros tenemos el mundo para caminar, ¡sigue andando!»

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«cuando me fui de mi casa, niño aún, mi madre me acompañó a la estación y cuando subí al tren me dijo: "este es el segundo y último regalo que puedo hacerte: el primero fue darte la vida, el segundo la libertad para vivirla"».



«muero contenta porque cada vez te pareces más a lo que cantas». estas fueron las palabras con las que sara obsequió a su hijo poco antes de morir.

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no soy de aquí, ni soy de allá
no tengo edad, ni porvenir
y ser feliz es mi color de identidad.

no soy de aqui, ni soy de allá | facundo cabral, 1970

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carpe diem
bom domingo