«COMO POE POETA LOUCO AMERICANO»
[contra todo alegado endurecimento do coração]
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«hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás»
ernesto
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«uma foto que exprime a pobreza e a miséria.
a menina retratada trajava trapos e estava descalça.
o fotógrafo emprestou-lhe a roupa apenas para tirar a fotografia.
este tipo de fotografias com tipos populares eram comuns e editadas como bilhetes postais e vendidos aos turistas.
a foto foi feita em nápoles , itália , por volta de 1890.
apenas sabemos o nome do fotógrafo; a. de simone.
a menina manteve o anonimato.
há, provavelmente, uma mensagem contida na imagem e que o fotógrafo intencionalmente utilizou na sua composição.
a menininha segura um pássaro nas mãos.
parece ser um pombo branco.
representaria a liberdade e esperança que tanto almejavam as classes mais desfavorecidas de nápoles?
usou a roupa emprestada mas ficou com os pés descalços.
terá sido por mero acaso ou para denunciar a dureza da vida da maior parte dos napolitanos?
um registo fotográfico que permite muitas leituras.»
a história esquecida
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disseram a maradona para que ele se limpasse e ele lavou suas bocas
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maradona, napoli, nápoles...
havia mais de meio século que o time da cidade não ganhava um campeonato, cidade condenada às fúrias do vesúvio e à derrota eterna nos campos de futebol, e graças a maradona, o sul obscuro tinha conseguido, finalmente, humilhar o norte branco que o desprezava. campeonato atrás de campeonato, nos estádios italianos e europeus, o napoli vencia, e cada gol era uma profanação da ordem estabelecida e uma revanche contra a história. em milão odiavam o culpado desta afronta dos pobres que deixaram seu lugar, chamavam-no presunto cacheados. e não só em milão: no mundial de 90, na itália, a maioria do público castigava maradona com furiosas vaias toda vez que tocava a bola, e a derrota argentina frente à alemanha foi comemorada como uma vitória italiana. quando maradona disse que queria ir embora de nápoles, houve os que lhe lançaram pelas janelas bonecas de cera atravessados por alfinetes. prisioneiro da cidade que o adorava e da camorra, a máfia dona da cidade, ele já estava jogando contra a vontade, no contra-pé; e então, explodiu o escândalo da cocaína. maradona transformou-se subitamente em maracoca, um delinqüente que se tinha feito passar por herói. mais tarde, em buenos aires, a televisão transmitiu o segundo acerto de contas: a detenção, ao vivo, como se fosse uma partida, para deleite dos que desfrutaram o espetáculo do rei nu que a polícia levava preso. «é um doente», disseram. e disseram: «está acabado». o messias convocado para redimir a maldição histórica dos italianos do sul tinha sido, também, o vingador da derrota argentina na guerra das malvinas, mediante um gol velhaco e outro gol fabuloso, que deixou os ingleses girando como piões durante alguns anos; mas na hora da queda, o pibe de ouro não passou de um farsante cheirador e putanheiro. maradona tinha traído os meninos e desonrado o esporte. deram-no como morto. mas o cadáver levantou-se de um salto. cumprida a penitência da cocaína, maradona foi o bombeiro da seleção argentina, que estava queimando suas últimas possibilidades de chegar ao mundial de 94. graças a maradona, chegou lá. e no mundial, maradona era outra vez, como nos velhos tempos, o melhor de todos, quando estourou o escândalo da efedrina.
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o mundial de 94
jogou, venceu, mijou, perdeu. a análise acusou a presença de efedrina e maradona acabou de mal jeito o mundial de de 94.
maradona nunca havia usado estimulantes, nas vésperas das partidas, para multiplicar seu corpo. é verdade que se metera com cocaína, mas se dopava em festas tristes, para esquecer ou ser esquecido, quando já estava encurralado pela glória e não podia viver sem a fama que não o deixava viver. jogava melhor do que ninguém, apesar da cocaína, e não por causa dela.
maradona carregava uma carga chamada maradona, que fazia sua coluna estalar. o corpo como metáfora: suas pernas doíam, não podia dormir sem comprimidos. não tinha demorado a perceber que era insuportável a responsabilidade de trabalhar como deus nos estádios, mas desde o princípio soube que era impossível deixar de fazê-lo.
«necessito que me necessitem», confessou, quando já tinha há muitos anos o halo na cabeça, submetido à tirania do rendimento sobre-humano, intoxicado de cortisona, analgésicos e ovações, acossado pelas exigências de seus devotos e pelo ódio dos que ofendera.
a máquina do poder o tinha jurado. ele lhe dizia de tudo, e isso tem seu preço, o preço se paga à vista e sem descontos. e o próprio maradona ofereceu a justificativa, por sua tendência suicida de servir-se de bandeja na boca de seus muitos inimigos e por essa irresponsabilidade infantil que o impele a precipitar-se em todas as armadilhas que se abrem em seu caminho.
os mesmos jornalistas que o pressionam com os microfones, reprovam sua arrogância e suas zangas e o acusam de falar demais. não lhes falta razão; mas não é isso que não podem perdoar nele: na verdade, não gostam do que às vezes diz. este garoto respondão e esquentado tem o costume de lançar golpes para cima.
em 86 e em 94, no méxico e nos estados unidos, denunciou a ditadura onipotente da televisão, que obrigava os jogadores a extenuar-se ao meio-dia, esturricando-se ao sol, e em mil e uma ocasiões, ao longo de toda a sua acidentada carreira, maradona disse coisas que mexeram em casa de marimbondos.
ele não foi o único jogador desobediente, mas foi sua voz que deu ressonância universal às perguntas mais insuportáveis: por que o futebol não é regido pelas leis universais do direito do trabalho? se é normal que qualquer artista conheça os lucros do show que oferece, por que os jogadores não podem conhecer as contas secretas da opulenta multinacional do futebol?
quando maradona foi, finalmente, expulso do mundial de 94, os campos de futebol perderam seu rebelde mais clamoroso. e perderam também um jogador fantástico. maradona é incontrolável quando fala, mas muito mais quando joga: não há quem possa prever as diabruras deste criador de surpresas, que jamais se repete e goza desconcertando os computadores.
no frígido futebol do fim de século, que exige ganhar e proíbe divertir-se, este homem é um dos poucos que demonstra que a fantasia também pode ser eficaz.
eduardo galeano | futebol ao sol e à sombra, 1995.
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«o menino quis ser peixe e correu à beira do mar
pôs os pés dentro d’água
mas não pôde ser peixe.
o menino quis ser nuvem e seus olhos ao céu levou
voava a nuvem no ar
mas o menino não voou.
e o menino quis ser homem, e forte compôs sua voz
mas o mundo era tão seu,
que o menino, assim menino cresceu
foram passando os anos e o menino se fez homem
e andou por estes mundos misturando desespero e dor
e um dia, o homem quis ser menino, quis ser nuvem,
quis ser peixe…
mas a praia era de angustia, e as nuvens passaram ao longe
e vai o homem pelo mundo, com razão ou sem razão
e leva um menino frustrado, gemendo em seu coração.»
atahualpa yupanqui
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un pájaro cuelga del hueco del cielo,
un pájaro blanco en estado de celo.
un pájaro ha dicho que ha visto vivir.
un pájaro puede, si quiere, ponerse a llorar
pero, ¿quién ha visto que un pájaro tenga que hablar?
¿quién sabe de un agua que cure el dolor?
¿quién sabe de un sitio que guarde el amor?
¿quién sabe una historia que sepa mejor?
¿quién sabe de un viejo y un niño jugando en el mar
y de un pájaro blanco al que se le ha olvidado volar?
generaciones | silvio rodríguez (1970)
cantan: isabel parra e silvio rodríguez
en vivo chile 1990
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há quem diga que a memória é seletiva e outros que é remota.
acho que são as duas juntas a razão de eu olhar pra foto da menininha e lembrar de maradona.
a vida é uma tombola... se eu fosse maradona viveria como ele...
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a vida é uma loteria
de noite e de dia
la vida es una tómbola
y arriba y arriba
la vida tómbola | manu chao 2007
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cara e coroa
é uma vergonha
cortejar a morte
em um dia como esse
com o sol batendo na cara
no meio de um azul delirante
lavado pela chuva de agora há pouco.
chega a ser indecente
a ideia de desaparecer do mapa
especulando se vai deixar rastros
ou se alguém vai se importar em decifrá-los.
é um direito seu afinal, não se discute
vem trabalhando duro nisso
de forma honesta
procurando ampliar sua consciência nesse campo
o que faz todo o sentido
tentando não fazer do amor pela vida
uma forma negativa de vínculo
pensar na morte
a essa altura
deveria ser tão natural
quanto pensar na vida,
ou deveria ser a mesma coisa
os dois lados da moeda
girando no ar sem nunca cair
mas simplesmente não parece certo
com tanta beleza por perto
e além do mais
em cinco minutos
o gato vai entrar no quarto
e pular na cama exigindo um carinho
e você,
contra todo alegado endurecimento do coração
vai querer estar lá
para dar isso a ele.
fernando abreu
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«um gato tem honestidade emocional absoluta: os seres humanos, por uma razão ou outra, podem esconder os seus sentimentos, mas um gato jamais o faz.»
ernest hemingway
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«às vezes eu ansiava por alguém que, como eu, não estava ajustado perfeitamente com sua idade, e essa pessoa era difícil de encontrar, mas logo descobri gatos, em que eu poderia imaginar uma condição como a minha.»
julio cortázar
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edgar allan poe
por fausto wolff
o homem era alto, magro, cabeça enorme. pobre, órfão de pai e mãe, criado por um tutor militarista, passou a tomar grandes porres, o que não o impedia de escrever. escreveu, entre outras obras-primas, o primeiro romance de detetive. ignorado no seu país, foi traduzido por baudelaire. em 1839, já havia publicado dez livros que lhe rendiam menos do que me rendem os meus. num cubículo da filadélfia editou o graham's magazine. ganhava US$ 800 por ano e conseguiu aumentar a tiragem da revista de cinco mil para 45 mil exemplares. em 1842 sua mulher morreu de tuberculose. ele desmoronou e, além de beber, passou a fumar ópio. foi despedido. ninguém lhe dava um emprego decente. em 1849, em baltimore, prometeu votar várias vezes em um mesmo candidato, caso lhe pagassem uma garrafa de uísque. foi largado nu em uma sarjeta pedindo que lhe dessem um tiro nos miolos. morreu dois dias depois, aos 38 anos. no seu túmulo, apenas o número 80. trinta anos depois, já reconhecido como o melhor escritor nascido em solo americano, os cidadãos de boston recolheram dinheiro para lhe dar uma sepultura digna onde inscreveram a frase «and the raven said never more».
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como poe, poeta louco americano
eu pergunto ao passarinho
pássaro preto, black bird
pássaro preto o que se faz?
heaven never heaven never never never never never heaven
pássaro preto, black bird
pássaro preto, me responde
tudo já ficou atrás
heaven never heaven never never never never never heaven
pássaro preto, black bird
pássaro preto, me responde
o passado nunca mais
velha roupa colorida | belchior, 1976
(gravado em 2011, no uruguai)
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o gato (da foto)
na janela da sala che guevara
chama-se «ernestito»
«ernestito che guevara»
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#américas #repecho