CHICO E A CULTURA LATINOAMERICANA
ENTREVISTA A
HUMBERTO WERNECK, FERNANDO MORAIS E ERIC NEPOMUCENO
1989
- Durante uma época houve intenso intercâmbio entre diversos países latino-americanos na área cultural - uma espécie de projeto coletivo de trabalho na música, na literatura. Agora isso parece ter declinado. A América Latina saiu de moda?
Chico - A impressão que tenho é a seguinte: durante determinada época, boa parte dos países latino-americanos estava unida pela via da tragédia. Ditaduras, sistemas repressivos, cujos métodos eram muito parecidos e se repetiam. O drama de determinado país era a repetição do que acontecera pouco antes em outro, e um aviso do que aconteceria em um terceiro logo depois. Estou falando dos anos 70, época em que começou a circular com maior intensidade aquilo que a gente poderia chamar - com certo cuidado, porque a expressão está muito desgastada - de cultura de resistência. Na música, havia canções de protesto no Chile, na Argentina, no Brasil, em toda parte. Para simplificar: os governos agiam com os mesmos métodos, pareciam mais unidos que nunca, e os artistas também, uns oprimindo, outros resistindo. Havia, então, uma atmosfera de unidade latino-americana, que depois foi se dissipando, principalmente no que se refere ao Brasil. Hoje, vivemos como antes. Nunca houve um intercâmbio cultural real, que nos incluísse. Na América Latina, e no Brasil sobretudo, as elites sempre viveram voltadas para fora. A elite intelectual também.
- Muito antes do período generalizado de regimes militares no Cone Sul a produção cultural e artística foi um meio de comunicação coletiva na América Latina. Havia a música, o cinema mexicano e o Brasil também participava, até mesmo com edições da revista O Cruzeiro, que circulava de Cuba até a Patagônia. Os ecos desse trânsito chegavam até você? Fazem parte da sua memória?
Chico - Em primeiro lugar, é preciso lembrar que na minha infância e adolescência a informação circulava de maneira muito mais lenta do que circula hoje. A televisão, por exemplo, não era tão desenvolvida e poderosa. Mas a informação chegava, é claro, e era bastante. Lembro que a música latino-americana era ouvida, e o bolero faz parte da minha memória: Agustin Lara, o trio Los Panchos, Lucho Gatica, que todo mundo achava que era mexicano e é chileno, e ainda Pérez Prado, a música cubana... Havia também a música latino-americana de Hollywood, Xavier Cugat - que é espanhol da Catalunha - , essas coisas. A música mexicana e a cubana fazem parte da minha formação, mas é bom lembrar que a gente ouvia também música francesa, música italiana, uma variedade muito maior do que a que se ouve hoje no Brasil. Do cinema mexicano, não lembro. Os ecos hispânicos vinham na música, mas a América Latina era para mim uma coisa um tanto remota. Eu não lia, por exemplo, autores do Continente: minha adolescência foi dedicada à leitura de autores brasileiros, europeus e norte-americanos. Antes do chamado boom eu praticamente desconhecia o trabalho dos escritores da América hispânica.
- Você foi, porém, um dos primeiros a falar de um autor que no Brasil era praticamente desconhecido: Gabriel Garcia Márquez. Como ocorreu essa descoberta?
Chico - É que em 1969 eu morava em Roma, e o livro Cem anos de solidão fazia muito sucesso. Lembro das pilhas nas livrarias, as capas azuis do livro, que li em italiano. Não consigo lembrar exatamente em que ordem, mas naquela mesma época li Jorge Luís Borges e Julio Cortázar. Só que, para mim, eram autores isolados. Eu não via no trabalho deles uma literatura do Continente: havia Borges e Cortázar e García Márquez. Com o boom acho que o mundo inteiro percebeu que eles eram parte de uma literatura feita em um continente chamado América Latina...
- A partir do final dos anos 70 você virou um dos mais ativos promotores do intercâmbio cutural entre o Brasil e os países do Continente. Como se deu essa aproximação sua com a América Latina?
Chico - A partir de janeiro de 1978, quando fiz minha primeira viagem a Cuba. Antes, da América Latina, eu só conhecia a Argentina, mas tinham sido visitas rápidas, viagens profissionais, quatro ou cinco dias, com apresentações, shows, entrevistas, enfim, tudo muito rápido, muito superficial.
- E nessas viagens você teve oportunidade de conhecer artistas e intelectuais argentinos?
Chico - Tive, e também de outros lugares. Durante um certo tempo, lá por volta de 1973, Buenos Aires foi uma espécie de amostra daquilo que eu encontraria anos depois em Cuba: pessoas de um outro universo chamado América hispânica. Foi a época em que conheci grupos de teatro, intelectuais de esquerda, e como havia muitos exilados uruguaios - os chilenos chegaram logo depois - , conheci alguns: o músico uruguaio Daniel Viglietti, por exemplo, com quem depois fiz vários trabalhos, ou o escritor Eduardo Galeano. Mas, enfim, eram sempre viagens de poucos dias. Já com Cuba a história foi outra. Na minha primeira viagem, em janeiro de 1978, passei um mês, como integrante do júri de teatro do prêmio Casa de las Américas. Não havia preocupação de show, ensaio, nada disso. Aliás, eu já não fazia shows no Brasil e não queria saber de vida de cantor. Eles logo descobriram que eu era el cantante que no canta... Até hoje brincam comigo por causa disso.