sábado, 23 de fevereiro de 2013


CHICO E CUBA

II



ENTREVISTA A
HUMBERTO WERNECK, FERNANDO MORAIS E ERIC NEPOMUCENO


1989


- Como aconteceu essa aproximação sua com Cuba?

Chico - Em 1976, Fernando Morais, que tinha ido a Cuba, fez lá em casa uma projeção de slides. Naquele tempo esse negócio de vídeo não era tão difundido. Lembro até hoje da parede de casa com as imagens de Cuba. O Fernando falava da ilha, e um grupo ouvia e fazia perguntas. Para nós, tudo era novidade. Naquele tempo, só se ia a Cuba exilado ou clandestino. Fernando foi o primeiro jornalista a fazer uma viagem às claras. Depois daquela noite, veio o convite da Casa de las Américas. O grupo era formado por Ignácio de Loyola Brandão, Antonio Callado, Fernando Morais e eu. Era a primeira vez desde 1964 que brasileiros do Brasil participavam do júri: antes, só brasileiros que estavam fora, exilados. Então, as imagens projetadas na parede da minha casa foram o começo.

- E antes da viagem, das imagens na parede, o que Cuba significava pra você?

Chico - Para falar a verdade, uma coisa remota. A Revolução, a Crise do Mísseis, a própria morte do Che Guevara eram fatos muito distantes. Acho que a morte do Che na Bolívia, em 1968, talvez tenha sido o último impacto que recebi de Cuba. A partir daí, e com tudo de retrógrado que aconteceu no Brasil, com o fechamento de todas as portas, Cuba ficou distante. Claro que antes havia uma imagem que posso chamar de romântica. Lembro até que, em 1964, no dia do golpe de Estado no Brasil, havia na Faculdade de Arquitetura de São Paulo, onde eu estudava, uma exposição de cartazes de cinema e teatro feitos em Cuba. Assim que a gente soube do golpe, um grupo de alunos invadiu a exposição e literalmente saqueou tudo. Eu levei para casa um cartaz da peça de Gorki, La Madre. Nós todos sentimos que, com o golpe, se rompia para sempre um elo com Cuba, e queríamos preservar alguma coisa. Isso faz parte da pré-história da minha ligação com Cuba. Mas essa imagem romântica não se estendia à América Latina. Cuba era um caso separado, à parte.

- E como a ilha se transformou em ponte entre você e o Continente?

Chico - Em Cuba eu comecei a encontrar gente, conhecer pessoas de vários países latino-americanos: músicos, artistas, intelectuais. Antes, havia antecedentes isolados, como as viagens à Argentina e um pouco da música dos exilados chilenos. Minha primeira ida a Cuba coincidiu com um momento muito forte daquela espécie de movimento de resistência que era muito ativo nos anos 70: cinema, música, teatro, literatura. O tempo da latino-americanização, um movimento coletivo espontâneo. Cuba deixava de ser apenas refúgio de perseguidos políticos, dos banidos pelo sistema, dos grupos que seqüestravam aviões e iam parar lá. Vendo as imagens dos slides percebi, na hora, que alguma coisa mudava na minha cabeça. Deu vontade de ir lá ver. Quando recebi o convite, aceitei de imediato. Eu quase tinha me esquecido de Cuba... Além do mais, devo confessar que aceitar o convite significava a atração do desafio, da transgressão, de ir ao lugar proibido. Viajar clandestino era meio difícil, no meu caso. Fui, então, às claras: no começo de 1978 viajei para Lisboa, fiz um programa de televisão e em seguida embarquei para Havana.

- Antes mesmo da viagem você fez, com Francis Hime,uma música para Cuba, chamada Maravilha.

Chico - Essa música é de antes? Não me lembro. Acho que foi depois. O que lembro é que quando fiz a música para o filme Dona Flor e seus dois maridos, do Bruno Barreto, o que eu tinha na cabeça eram as imagens dos slides de Cuba na parede da minha casa. A música se chama 0 que será. A influência está no ritmo, no que eu achava que era a mistura de Cuba com a Bahia, e batizei de "Cubaião", um baião cubano.

- E na letra?

Chico - A letra dessa canção é libertária, até um pouco anárquica, mas não tem nada a ver com Cuba. Acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar. A letra, afinal, é uma pergunta, não uma resposta. Mas não é, com certeza, da Revolução que ela fala. Em, outras canções, a influência de Cuba e da América latina aparece nas letras. É o caso de Tanto amar, que fala do circuito comum aos latino-americanos que eu encontrava em Cuba. Fala da Bodeguita, de Havana, de Manágua e de Porto Rico, mas é uma canção de amor.

- Durante muito tempo, vários intelectuais latino-americanos disseram que através de Cuba descobriram o Continente. Com você aconteceu a mesma coisa?

Chico - Eu não diria que compreendi a América Latina a partir de Cuba. Minha explicação é, talvez, mais prosaica: é que em Cuba conheci pessoas de diferentes países latino-americanos e, através dessas pessoas, de seu trabalho, que no Brasil a gente não conhecia, descobri a América. Na primeira vez que fui a Cuba, conheci o poeta argentino Juan Gelman, o escritor nicaragüense Sérgio Ramírez, o mexicano Efraín Huerta, o venezuelano Miguel Otero Silva, o poeta e padre nicaragüense Ernesto Cardenal, enfim, pessoas que não faziam parte do meu circuito, realidades que para mim não eram próximas. Era gente de lugares que não faziam parte da minha geografia, da minha cultura. No começo, os nossos contatos eram meio difíceis. Lembro que nosso grupo, naquele júri, ficava espantado com a familiaridade que havia entre o pessoal dos outros países.

- Foi uma espécie de retomada de raízes perdidas?

Chico - Não. O brasileiro, na verdade, nunca teve essa raiz latino-ameriana, nenhuma ligação com o resto do continente. No máximo, havia aquela rivalidade furiosa no futebol - ódio de argentino, de uruguaio - e um certo desprezo, uma certa carga negativa, pelos bolivianos, paraguaios... O que me impactou em Cuba, ao ver aquelas pessoas todas, é que entre elas havia uma certa identidade, um trânsito livre, e que um brasileiro sentia-se isolado. Anos mais tarde, quando fui convidado para integrar o Comitê de Intelectuais pela Soberania dos Povos Latino-americanos, continuei sentindo isso. O Comitê tinha grandes nomes, a companhia era a melhor possível, mas volta e meia eu me pegava no ar. Uma vez, falavam muito em um tal Carlos: "A gente pede isso para o Carlos", e "O Carlos foi falar com ele", e eu pensando em quem seria aquele Carlos tão familiar a todos. A certa altura, não agüentei mais e perguntei: "Mas que Carlos é esse?" Aí todos me olharam espantados: era Carlos Fuentes, escritor mexicano. Para eles, naquelas circunstâncias, Carlos só podia ser Carlos Fuentes. O diálogo entre Garcia Márquez, Cortázar, o pintor chileno Roberto Matta, corria fluido, natural. Para mim, nem tanto: outra cultura, outra geografia... Eu era o caçula do grupo e, apesar da camaradagem, às vezes me sentia meio excluído.

- E com os músicos? Naquela sua primeira viagem, em 1978, você acabou cantando...

Chico - É verdade: os cubanos armaram uma festa em um teatro enorme, e na platéia havia muitos exilados brasileiros. Foi muito emocionante. Na volta ao Brasil, quando fui preso, no interrogatório queriam saber quem eu havia visto em Cuba, com que exilados havia mantido contato. Estavam mal-informados, porque, àquela altura, em Cuba só havia exilados mais velhos, viúvas de guerrilheiros, de operários, crianças... Exilados da ativa, a gente encontrava em Paris ou Lisboa, não em Cuba. Aquela festa marcou o início do meu contato mais estreito com músicos e compositores cubanos. Foram muitos os motivos da minha aproximação com Cuba, e a música foi um dos mais fortes. Afinal, a ligação entre a música cubana e a brasileira é muito profunda.

- O trabalho dos brasileiros era conhecido lá?

Chico - Era, e de um modo estranhíssimo. Eles confundiam as coisas, havia equívocos tremendos. Os cubanos recebiam música brasileira através de cassetes gravados em casa de amigos e mandados para lá. Então, não sabiam direito quem era quem. Além disso, chegavam alguns discos feitos na França, essas coletâneas que algumas gravadoras fazem com seu elenco, e isso confundia ainda mais. Havia um que era incrível: na capa, a Nara Leão aparecia como sendo a Gal Costa, e vice-versa. Durante muito tempo, alguns músicos cubanos achavam que Nara Leão cantava Baby e a Gal Costa era a cantora de Carcará. Nesse mesmo disco, aparecia na capa um francês louro, como se fosse o Edu Lobo. A gravação era mesmo do Edu, mas durante um tempão os cubanos achavam que o cantor era aquele louro da capa... Confundiam ainda o Gilberto Gil com o Jackson do Pandeiro... Enfim, uma complicação danada. Seja como for, desde 1967 ou 68, quando começou o movimento da Nueva Trova, a influência da música brasileira era importante no trabalho de jovens cubanos, como Silvio Rodriguez e Pablo Milanés.

- Como essa aproximação com músicos e intelectuais de Cuba e do resto do Continente influiu em seu processo de criação?

Chico - Fazer essa identificação é difícil para mim. Influenciou, com certeza, e não apenas minhas músicas. Uma série de outras coisas em mim sofreram essa influência.