sexta-feira, 27 de setembro de 2013



ANOTHER SELF PORTRAIT

BOOTLEG 10


O eu é um outro
RIMBAUD


POR DYLANESCO



O décimo volume da Bootleg Series trouxe à luz interpretações até então inéditas. Uma delas é do próprio Bob Dylan, que apresenta empenho em suas interpretações e mostra que o período que compreende este volume, entre 1969 e 1971, foi um dos melhores no timbre de sua voz. A outra é a própria interpretação do álbum pela crítica, desmistificando a verdade absoluta de que Self Portrait foi um erro proposital e que é um disco sem qualquer relevância para a história dylanesca.

Bob Dylan parece não apenas interpretar as canções, mas evocar o espírito dos personagens contidos nas letras. Assim, achar que sua intenção ao gravá-las foi de caçoar seus fãs ou afastá-los cai por terra ao ouvir Another Self Portrait. Como um rito de passagem, Bob Dylan passava por uma “amnésia” (como ele mesmo apelidou) e resolveu buscar inspiração em canções que fizeram parte de sua história – análogo ao que fez mais de vinte anos depois, na duologia Good As I Been To You e World Gone Wrong.


Se há um erro em Self Portrait, e nisso é preciso admitir, está em dois pontos cruciais para a péssima recepção de Self Portrait em 1970: a seleção das músicas – que não valorizaram o melhor de Dylan – e, o pior, a produção de Bob Johnston em Nashville, após Bob gravar em New York. Na capital do country, foram incluídas linhas de bateria, refeitos os violões e baixo e incluídas orquestrações que murcharam a beleza da voz de Bob Dylan e acrescentaram uma pieguice distante do(s) perfil(is) dylanesco(s).

Além de ressignificar Self Portrait, “Another” também compartilha algumas sobras dos álbuns pré e pós o disco. De Nashville Skyline, versões alternativas de “I Threw It All Away” e “Country Pie”; de New Morning, versões com arranjos de sopro e cordas feitas por Al Kooper, além de variações de músicas como “Went To See The Gypsy” e “If Dogs Run Free” e duas músicas com George Harrison, nas sessões que antecederam o disco.


Assim como em Self Portrait, dois novos pontos dão uma nova leitura a New Morning: o primeiro é a escolha, dessa vez certeira, de evitar as orquestrações. Apesar de belíssimas, o disco perderia a sua aura de ser uma obra de um homem de família realizado com seu cotidiano; o segundo é que as sessões de gravação começaram antes do lançamento de seu antecessor, o que desmistifica a ideia de que Dylan teria feito New Morning para fazer as pazes com a crítica.

A versão de luxo conta não só com os dois discos que compõe “Another”, mas também com outros dois CDs e dois livros. O terceiro CD é o registro, até então inédito em sua totalidade, da apresentação que Bob Dylan e The Band fizeram na Ilha de Wight, em 31 de agosto de 1969. O último disco é uma antecipação do próximo lançamento dylanesco: Self Portrait remasterizado – no final do ano será lançada a discografia completa remasterizada de Dylan.


Os dois livros são tão calorosos quanto a própria música. O primeiro, contém textos do crítico Greil Marcus (que ganhou fama dylanesca principalmente pela sua crítica com os dizeres “What is this shit?” sobre Self Portrait em 1970) fazendo uma nova leitura e do jornalista Michael Simmons comentando as músicas do Bootleg. O segundo livro, intitulado Time Passes Slowly, compila ótimas fotos de John Cohen e Al Clayton, além de imagens de capas de single, revistas e pôsteres desta época.

O canal oficial do Bob Dylan no Youtube postou um vídeo em forma documentário sobre a gravação do disco Self Portrait, de 1970, como divulgação do décimo volume do “Bootleg Series”, que reúne sobras de estúdios e versões ao vivo.

Assista ao vídeo:





Abaixo, alguns destaques do álbum (em ordem de aparição):

Pretty Saro: é impossível não se apaixonar por cada onda sonora emitida nessa música. O nível de devoção de Bob aliado ao timbre aveludado de sua voz nessa época só traz mais paixões à canção que possivelmente foi entoada tendo sua mulher, Sara, na mente.

Spanish Is A Loving Tongue: quase similar a “Pretty Saro”, “Spanish…” é de uma beleza que quebra qualquer argumento que diz que Bob não é um bom cantor. E o quê dizer de: “Left her heart/ I broke my own”?

These Hands: a ambiência intimista e simplista de “These Hands” só mostram o potencial que Self Potrait poderia ter. Com certeza a “merda” de Greil Marcus não teria saído de sua boca.

If Not For You: apesar da beleza, como já dito, esta versão com Dylan ao piano e sendo acompanhado apenas por um baixo e um violino não daria a felicidade que New Morning tanto possui. Mas não há palavras para agradecer a possibilidade de ouví-la nessa versão.

Days of ‘49: aqui, escutamos apenas piano, violões e Bob Dylan. Nada de bateria e overdubs dos outros instrumentos que apareceriam em Self Portrait. E nessa versão crua, podemos ver o quanto imerso Bob estava. O “Oh my godness” do meio nunca soou tão real.

Tattle O’Day: cover da música também conhecida por “Little Brown Dog”. Bob Dylan transforma uma simples canção de criança em uma fábula tão crível quanto sentimental.

New Morning: eu acho que a escolha pela versão que acabou no disco foi mais acertada do que esta, com sopros. Contudo, é necessário elogiar todo o trabalho de orquestração de Al Kooper. Realmente não é uma versão de se jogar fora (quando soube que Dylan não a usaria, Al pediu para ficar com uma mixagem de lembrança)

Belle Isle: apesar do intimismo comovente nessa versão, devo admitir que gosto bastante da orquestração que foi para a versão final de Self Portrait.

Time Passes Slowly #2: Bob Dylan evoca a versão de “A Little Help From My Friends” de Joe Cocker para mostrar o potencial de rock de responsa que “Time Passes Slowly” tem.

When I Paint My Masterpiece: essa demo da canção é um ótimo exemplo da habilidade de Dylan ao piano. Isso sem contar sua interpretação e as frases que não foram cantadas antes: “Sailin’ ’round the world in a dirty gondola/ Wish I hadn’t sold my old Victrola/ There ain’t nothing like that good old rock-and-rolla”.

Wild Mountain Thyme: essa interpretação, da Ilha de Wight, já me era familiar de bootlegs não-oficiais, mas nunca havia escutado em uma versão tão limpa e definida. Só me vez me apaixonar ainda mais por uma canção que fala basicamente de “ervas daninhas”.

It Ain’t Me, Babe: como que reafirmando o significado da música, que nada tem a ver com um caso amoroso, Bob Dylan revisita a canção com uma versão mais lenta, menos agressiva e com sua voz tão traumática quanto quando empunhou a guitarra, apenas 4 anos antes.

Highway 61 Revisited: essa versão acelerada e agressiva só pode ser imaginada como um racha entre dois carros em uma estrada vazia.



Ouça 15 das 35 músicas de “Another Self Portrait” aqui