sexta-feira, 3 de maio de 2013



OS AFRO-SAMBAS
DE BADEN & VINICIUS


_POR VINICIUS DE MORAES


DA CONTRA-CAPA DO LP



Quando há quatro anos atrás, Baden Powell e eu começamos a compor pra valer (ficamos praticamente sem sair durante três meses. "Samba em Prelúdio", "Só por amor", "Bom dia, Amigo", "Labareda" e "O Astronauta" são dessa safra), uma das coisas que mais o fascinava era ouvir um disco que meu amigo Carlos Coquejo me trouxera da Bahia, uma gravação ao vivo de sambas de roda e cultos de candomblé com várias exibições de berimbau em suas diversas modalidades rítmicas.

Nesse meio tempo, Baden deu um pulo a Salvador, onde teve a oportunidade de ver e ouvir candomblé e conviver com gente "por dentro" do assunto. A Bahia fez-lhe impressão enorme. Foi quando saiu nosso samba "Berimbau", que só por ser demais conhecido não consta desta série, embora a ela pertença, e o "Samba da Benção", de balanço nitidamente baiano.

Mas mesmo antes de "Berimbau", já Baden me catalisara para compor o "Canto do Caboclo Pedra Preta" aqui representado. O samba foi feito na hora, como se diz - a música e a letra da segunda parte buscando dar sentido ao canto original do "caboclo" - "Olô, pandeiro, olô viola", assim mesmo, com a vogal e no grave.

Pois quando o "caboclo" Pedra Preta nos dizia que o "pandeiro não quer que eu sambe aqui, viola não quer que eu vá embora", parecia nos querer ele dar as coordenadas desse eterno conflito do amor e do sexo, cujo bandarilheiro e o ciúme em que o elemento "macho" (o pandeiro) repudia vivamente a entrada em cena do "caboclo" Pedra Preta (o "outro"), mas já aqui com a conotação também da divindade, de Pai-de-Santo, capaz de arrastar o elemento fêmea (a viola) para o mundo subterrâneo da magia negra e do sexo místico.

Mas Pedra Preta não os concilia a não fugirem ao próprio destino - pandeiro tem que "pandeirar", viola tem que "violar". E quando na hora mágica do "caboclo", o galo canta fora de hora, o pandeiro parte, perdida que está para ele a partida. A viola se integrará na missa negra e, doravante, também ela será sacerdotisa do culto.


Esta é uma das interpretações que, uma vez terminado, o samba nos provocou. Mas a medida que ele se impunha pelo mistério do seu contexto, outros foram aparecendo. Pedra Preta seria, ao mesmo tempo, o elemento perturbador do eterno casal em conflito, cujo conflito é a essência mesma da vida em sua dinâmica. Só sei que me deixei completamente envolver pela sábia magia do candomblé baiano e durante meses vivemos em contato com o seu grave e obscuro mundo.

Data de então, também, o "Canto de Yemanjá" em que, parece, Baden atingiu uma beleza poucas vezes alcançada. O canto inicial, com que a rainha do mar anuncia a sua presença e através da qual cativa e atrai os homens para a boda sem sexo (pois Iemanjá, neta de Oxum, sendo sereia tem corpo de peixe dos quadris para baixo) possui um tal mistério que até hoje não posso ouví-lo sem me perturbar fundamente. Dulce Nunes interpretou-o a perfeição, com uma voz abstrata, como que vinda de fora do além, do mágico mundo marítimo de Iemanjá.


Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal.

Tirante algumas experiências características - como fez, por exemplo, meu querido e saudoso amigo Jayme Ovalle com os "Três Pontos de Santo" - nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica como por exemplo esse "duende da floresta afro-brasileira de sons" como eu disse de Baden Powell numa frase feliz.

É esta, sem dúvida, a nova música brasileira e a última resposta que dá o Brasil - esmagadora - à mediocridade musical em que se atola o mundo. E não digo na vaidade de ser letrista dos mesmos; digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo.

Notem também a estrutura rítmica puramente candomblé do "Canto de Xangô", em que Xangô agodô, o orixá velho, ao mesmo tempo que canta parece advertir Xangô jovem sobre a necessidade de amar sem medo, pois o jovem, após o primeiro fracasso amoroso, começa a adquirir uma certa reserva com relação ao amor. Em "Bocochê" (Segredo), volta ao tema de Iemanjá, já aqui tratado ritmicamente à maneira do Candomblé.


No "Canto de Ossanha", Baden, ao meu ver, atingiu o máximo de profundidade em sua carreira de compositor. É um samba "advertente" e muito revolucionário em seu contexto. Um samba positivo, que não se recusa a enfrentar os problemas do amor e da vida.

Em "Tempo de Amor", que é de todos o que menos se relaciona com o ritmo e a temática do candomblé, a estrutura do samba é sem embargo, autenticamente negra - o que justifica sua inclusão neste LP.

Quanto Roberto Quartin nos procurou, interessado em gravar esta série, combinamos com o jovem e talentoso produtor que o disco seria feito com um máximo de liberdade criadora e um mínimo de interesse comercial.

Não nos interessava fazer um disco "bem feito" do ponto de vista artesanal, mas sim espontâneo, buscando uma transmissão simples do queriam nossos sambas dizer. Gravaríamos, inclusive, faixas mais longas do que gostam os homens de rádio e, conseqüentemente, a maior parte dos nossos intérpretes.

E embora não sejamos cantores no sentido profissional da palavra, preferimos gravá-las nós mesmos a entregá-las a cantores e cantoras que realmente distorcem a melodia e o ritmo das canções em benefício de seu modo comercial de cantar ou de suas deformações profissionais adquiridas no sucesso efêmero junto a um público menos exigente.


Assim estamos certos de que pelo menos gravamos uma matriz simples e correta, sem modismos nem sofisticações. E não foi outra razão pela qual escolhemos uma equipe onde - apesar de haver um conjunto vocal profissional da qualidade do "Quarteto em Cy" e uma cantora que se vai firmando cada vez mais como Dulce Nunes - (ouçam o "Lamento de Exu") a obediência a esse princípio foi absoluta.

Nem as Baianinhas nem Dulce são "botadoras de banca" e cooperaram com toda a dedicação na feitura deste LP dentro do espírito que desejávamos Baden, Roberto Quartin e eu.

Para desprofissionalizar ao máximo a gravação criamos mesmo o que passou a ser chamado o "Coro da Amizade"; amigas e amigos nossos escolhidos a dedo que vinham à gravação e sob a orientação e regência do maestro Guerra Peixe - criador de todos estes notáveis arranjos que aqui estão - mandavam a sua brasa no coro.

Rio, fevereiro de 1966.
Vinícius de Moraes. 


OS AFRO-SAMBAS
DE BADEN & VINICIUS


_POR LUIZ AMÉRICO LISBOA JUNIOR


No início dos anos sessenta Vinicius de Moraes foi presenteado pelo baiano Carlos Coqueijo Costa com um exemplar do LP Sambas de Roda e Candomblés da Bahia, disco esse que impressionou profundamente o poeta descortinando para ele uma vertente da música popular que ele ainda não havia descoberto. Vinicius então mostra o disco a Baden Powell seu parceiro mais constante na ocasião e este também se encanta.

Em 1962 Baden visita a Bahia para apresentar um show com Silvia Teles no Country Club, familiariza-se com artistas e intelectuais baianos, demonstra seu interesse pelas tradições afro baianas e acaba sendo apresentado ao capoeirista Canjiquinha que o leva a terreiros, rodas de capoeira e o mais importante interpreta para ele os cânticos e sons do candomblé. Baden fica fascinado, não propriamente pelo sentido místico do que vira, mas sim pela beleza das harmonias do que ouvira.

Ao se reencontrar com Vinicius compõe o samba Berimbau e resolvem iniciar uma série de canções sobre a cultura afro brasileira. Nessa época Baden Powell estava estudando canto gregoriano com o maestro Moacyr Santos e percebeu que eles tinham semelhança com os cânticos afros que havia ouvido na Bahia e inspirando-se nessas duas influencias resolve então compor uma série de temas mesclando-os com a batida do samba, o resultado é esplendido e de grande beleza melódica, surgindo assim uma nova modalidade musical, os afro sambas no dizer de Vinicius de Moraes e que seria uma característica inconfundível na obra musical de Baden.

Passados os momentos de estudo e assimilação da temática os dois parceiros estavam prontos para iniciar a realização das canções e assim surge “Canto de Ossanha”, “Canto de Xangô”, “Bocoché”, “Canto de Iemanjá”, “Tempo de amor”, “Canto do caboclo Pedra Preta”, “Tristeza e solidão” e “Lamento de Exu”.

Findo o trabalho partiram então para a gravação das músicas num LP intitulado de Os Afros Sambas, produzido por Roberto Quartin dono da etiqueta Forma e com arranjos de Guerra Peixe. Disco antológico ele passa a história da música brasileira como sendo o primeiro trabalho em que se misturam instrumentos típicos do candomblé, atabaques, bongô, agogô e afoxé com outros da música tradicional como flauta, violão, sax, bateria e contrabaixo.

Gravado nos dias 3, 4, 5 e 6 de janeiro de 1966, o disco conta com a participação do Quarteto em Cy e com um coro misto formado por amadores ligados por amizade aos autores, aliás como bem definiu Vinicius, um “coro da amizade” pois a intenção apesar dos arranjos elaborados, era dar um tratamento simples, despojado e espontâneo a gravação. 

LUIZ AMÉRICO LISBOA JUNIOR



OS AFRO-SAMBAS
BADEN & VINICIUS
1966

FICHA TÉCNICA
Arranjos e regência: Maestro Guerra Peixe
Vocais: Vinicius de Moraes, Quarteto em Cy e Coro Misto
Sax tenor: Pedro Luiz de Assis
Sax barítono: Aurino Ferreira
Flauta: Nicolino Cópia
Violão: Baden Powell
Contrabaixo: Jorge Marinho
Bateria: Reisinho
Atabaque: Alfredo Bessa
Atabaque pequeno: Nelson Luiz
Bongô: Alexandre Silva Martins
Pandeiro: Gilson de Freitas
Agogô: Mineirinho
Afoxé: Adyr Jose Raimundo

FAIXAS
01- Canto de Ossanha
02- Canto de Xangô
03- Bocoché
04- Canto de Iemanjá
05- Tempo de amor
06- Canto do caboclo
07- Tristeza e solidão
08- Lamento de Exu