SOLEDAD NO RECIFE
*POR PAULO SERGIO PINHEIRO
Crítica sobre o livro de Urariano Mota
publicada no Caderno de Cultura do Estadão
Soledad Barrett Viedma deve ter sido uma personalidade instigante, caso contrário teria sido impossível criar um personagem tão extraordinário – para, em torno dela, revisitar, como faz Urariano Mota em seu livro, a chacina de militantes na Chácara São Bento, na periferia do Recife, em 1973, quando um grupo de operativos da ditadura militar e do Dops paulista, sob o comando do delegado Sérgio Fleury executou seis membros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Tendo sido capturados em lugares diferentes, os militantes apareceram como se tivessem sido mortos num tiroteio. Segundo a mentira oficial, teriam disparado 18 tiros, sem acertar nenhum, e recebido 26, sendo 14 na cabeça. Seus cadáveres ficaram brutalmente desfigurados; o corpo de Soledad (a ¿Sol?), grávida de cinco meses, de pé, enfiado num barril com o feto do filho ao fundo.
Onze anos depois do episódio, cabo Anselmo, que à época da chacina vivia com Soledad, diria: “Ela não morreu por minha culpa, morreu por aquilo que acreditava, morreu pelo caminho que escolheu. Ela morreu como vítima do movimento comunista internacional, não por minha culpa.” (pág. 86) Delírio tardio de autoabsolvição pela traição política e pessoal que cometera.
Evidentemente, Soledad no Recife, de Urariano Mota, poderia ter sido apenas o registro e a desmontagem da farsa montada em torno desse crime brutal. Algo impulsionado, talvez, pelo encantamento do autor por Soledad, militante nascida no Paraguai; pelos poemas escritos em torno dela (como os versos de Mario Benedetti: “Soledad no moriste en soledad/ por eso tu muerte no se llora/ simplemente la izamos en el aire”); por seu renome como militante.
Contudo, o romance de Urariano vai muito além. Recompõe o bárbaro sacrifício da militante e de seus cinco companheiros para tratar da resistência à ditadura sob ângulos inesperados – como a tensão do relacionamento de Soledad com Daniel/José Anselmo dos Santos, ninguém menos do que o cabo Anselmo, o antigo líder da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, que fizera um incendiário discurso às vésperas do golpe de Estado militar que derrubou o presidente João Goulart.
Esse aspecto não seria surpreendente, do ponto de vista das relações amorosas entre jovens militantes, não fora Daniel, o cabo Anselmo, o provável agente provocador de 1964 e o infiltrado delator da década seguinte.
A originalidade do livro está em fazer da tensão no par Soledad/Daniel a plataforma para o reexame de alguns temas clássicos da história dos movimentos de enfrentamento da ditadura, armados ou não. Por meio dos diálogos dos personagens – todos extremamente jovens (mesmo o cabo Anselmo, tinha, naquele momento, 30 anos ) – se desenrolam a discussão sobre a validade da luta armada, as contradições entre o amor e a militância, entre a vida pessoal e os objetivos da própria revolução, e a inserção da prática revolucionária no contexto latino-americano.
A inevitável pergunta de se o romance, em seu esforço para revisitar a chacina, foi bem-sucedido, não deve ser feita tendo no horizonte outras obras centradas na revolução mas com trama mais aprofundada e desenvolvida num período maior e num contexto mais detalhado. O que conta aqui é a eficiência da escolha, por Urariano, do gênero romance para examinar todas aquelas questões. Vem daí a originalidade de Soledad no Recife.
A protagonista da obra tem quase onisciência do cordeiro sacrificial. Há momentos na relação com Daniel/cabo Anselmo que ela parece antever o que a espera, o desfecho transfigurado pela própria situação de grávida de um filho do traidor infiltrado. O sentido do sacrifício antevisto foi expor às escâncaras a traição de Daniel/cabo Anselmo que ela apenas começava a pressentir, a partir do comportamento do companheiro em reunião com os colegas de militância.
O enorme encantamento do narrador com Soledad serve de contraponto para sua profunda repulsa em relação a cabo Anselmo. O que não o impede de desmontar quase com um rigor clínico – já ia dizendo “psicanalítico” – a personalidade do traidor. Retoma-se, assim, a questão da infiltração na organização, tema clássico desde o agente policial infiltrado no comitê de direção do partido bolchevique russo, logo depois de 1917, cuja idoneidade era atestada pelo próprio Lenin.
Há um espanto com a clareza dos clichês, dos lugares-comuns do jargão revolucionário, a referência aos lugares venerados (como Cuba) fartamente usados por Daniel. Nada espanta mais, entretanto, aos olhos de hoje, do que o fato de os companheiros de Soledad não terem podido perceber a tempo a verdadeira personalidade do cabo Anselmo.
Ao se aproximar o desfecho da trama, o foco se alarga e, em volta de Soledad, crescem as biografias dos militantes que foram com ela chacinados – e que ficaram soterrados na lembrança pela ignomínia cometida por Daniel.
São eles: Eudaldo Gomes da Silva, Jarbas Pereira Marques, José Manoel da Silva e Evaldo Luiz Ferreira de Souza (antigos companheiros do traidor na Marinha) e Pauline Reichstul, com uma trajetória tão exemplar como a de Soledad. Nascida em Praga, e tendo vindo para São Paulo com os pais, fez estudos na Universidade de Genebra, denunciou no exterior violações de direitos humanos no Brasil, se inseriu no movimento contra a ditadura e acabou regressando ao País, onde morreria. Em sua homenagem, seu irmão Henri Phillippe Reichstul, com a reparação recebida do Estado, criou uma fundação dedicada a serviços sociais.
A chacina dos quatro homens e duas mulheres na Chácara São Bento foi registrada pela imprensa amordaçada da época com o relato demonizado de suas biografias redigido pelos mandantes do crime. Sacrificada, Soledad reintegra neste livro o seu grupo. Mas o destaque da militante permanece, não propriamente em razão de sua história e de suas qualidades, compartilhadas com as de Pauline e dos outros, e sim porque a relação amorosa que manteve com o traidor assume conteúdos sacrificiais. O que ressalta os traços da traição absoluta do cabo Anselmo, capaz de articular o assassinato não apenas da companheira, mas do seu filho em gestação.
A maternidade destruída pela traição alarga a tragédia do assassinato de Soledad. No final do livro, o horror do desenlace esvazia a veneração, a fixação inicial inebriada do narrador pela protagonista. Segue-se a perplexidade diante da absurda dimensão do crime de Daniel/cabo Anselmo. Já lá se vão 36 anos de impunidade. Talvez o sacrifício de Soledad, Pauline, Eudaldo, Jarbas, José e Evaldo Luiz nos interpele para impedir que a ela continue a prevalecer, triunfante.
Paulo Sérgio Pinheiro,
cientista político,
é pesquisador associado do
Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP)