Tributo a um Rei Esquecido
Adaptado e ilustrado
por Enilton Grill
Do livro
Eu não sou cachorro, não
De Paulo César de Araújo
"Eu quis gritar seu nome e não pude (...)
O que foi que fizeram com ele?
Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem
Foi um rei"
Benito di Paula,
'Tributo a um rei esquecido', de 1974
Benito di Paula fazia uma homenagem a Geraldo Vandré, autor de 'Pra não Dizer Que não Falei das Flores' – canção-símbolo da luta contra a ditadura, censurada em 1968. Naquele mesmo ano, Vandré se exila no Chile. Voltou preso, em 1973. Um ano depois, a lembrança cantada por Benito di Paula também acabou proibida.
Lançada em 1974, ”Tributo a um rei esquecido” é uma homenagem de Benito di Paula a um dos artistas brasileiros mais visados pela ditadura militar: o cantor e compositor Geraldo Vandré.
O verso "Eu quis gritar seu nome / não pude” é uma referência ao fato de a simples pronúncia do nome Geraldo Vandré ser objeto de censura na época.
A sua voz e a sua imagem estavam praticamente banidas no Brasil. Mas o samba de Benito, além de evocar a memória do artista proscrito, amplificava uma pergunta que muitos brasileiros faziam (e ainda fazem) em relação a Vandré: “O que foi que fizeram com ele?”
Ao longo dos anos a resposta para esta pergunta tem corrido de um extremo ao outro: para a maioria Vandré foi um idealista que não transigia com sua arte e foi torturado até sofrer um processo de lavagem cerebral; para alguns poucos, ele mudou porque mudou. Simples assim.
Seja como for, a origem desta polêmica tem local, data e nome determinados: Rio de Janeiro, Maracanãzinho, 29 de Setembro de 1968, “Pra não dizer que não falei de flores”. Ali, em pleno regime militar, Geraldo Vandré apresentou ao público e ao júri do III Festival Internacional da Canção a mais contundente crítica jamais feita ao Exército brasileiro numa letra de música popular e num momento em que as Forças Armadas controlavam os poderes da República.
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão...
A repercussão da música foi imediata. De sua base no Forte Coimbra, no pantanal mato-grossense, o general Aspirante Basto enviou uma “Carta a Geraldo Vandré”, publicada no Última Hora, e na qual ele questionava o compositor:
“O que entende você de pátria, para dizer que nos quartéis se vive sem razão? Que mais você fez nesta vida, sem ser em troca de lucro?”, indagando ainda que “será uma vida sem razão a dos homens que neste momento, como eu, em terras longínquas ensinam a cor da bandeira brasileira?”
Mais adiante ele aconselhava o artista: “Cante o que quiser, mas não coloque nada de pátria no meio. Você não sabe o que é isso. A sua pátria deve ser um copo de cerveja.” E num tom cada vez mais exaltado, o general vaticinava: “Você passará, Vandré. O povo esquece depressa. Sua música causou sensação, mas logo será esquecida.”
Aspirante Basto pode ter sido um bom militar, mas foi com certeza um péssimo vidente. Lançada em meio aos protestos estudantis de 1968, “Pra não dizer que nao falei de flores” (ou “Caminhando”, como ficou mais conhecida) se tornou uma espécie de Marselhesa brasileira, inflamando greves, passeatas e manifestações até os dias de hoje.
Na época a composição não venceu o festival e foi proibida pela Censura Federal sob o argumento de veicular uma mensagem “subversiva e atentatória ao regime democrático”.
Mas os militares não estavam satisfeitos; queriam também a "cabeça" de Geraldo Vandré. E logo após a decretação do AI-5, quando já não havia mais regime democrático, foram bater à porta de um hotel em Anápolis, Goiás, onde o cantor se hospedara em meio a uma turnê. Providencialmente, entretanto, Vandré já estava a caminho do Rio, seguindo depois para a fazenda de Dona Aracy Carvalho, viúva do escritor João Guimarães Rosa, no sertão mineiro.
Pouquíssimas pessoas sabiam do esconderijo, no qual Vandré permaneceria durante mais de um mês. O compositor Geraldo Azevedo, um dos poucos que tinham acesso a ele, recorda-se da tensão daqueles dias.
“Para ir lá eu tinha de me comportar como um militante de organização política clandestina; entrava num carro, mudava para outro, fazia tudo para despistar pessoas da repressão que pudessem estar me seguindo para, por meu intermédio, chegar a Vandré.”
Ali, na fazenda dos Guimarães Rosa, enquanto traçava a rota que seguiria no exílio, Vandré compôs em parceria com Geraldinho Azevedo “A canção da despedida”, premonição da sua própria trajetória a partir dali: ”Já vou embora / mas sei que vou voltar / amor, não chora / se eu volto é pra ficar...”
Alguns dias depois, o artista seguiu para o Rio Grande do Sul e em pleno domingo de Carnaval, 16 de fevereiro de 1969, atravessou a fronteira do Brasil com o Uruguai.
Os primeiros boatos diziam que ele estaria preso e incomunicável em alguma guarnição do Exército, de que fora torturado ou até mesmo executado pelo Esquadrão da Morte.
Em Junho de 1969 parte do mistério se desfez quando o jornal O Globo localizou Vandré em Santiago do Chile. “Estou bem vivo. Escrevendo e fazendo da saudade o que posso fazer”, disse ele à reportagem.
Sem visto para permanecer no país, no mês seguinte Vandré foi obrigado a deixar o Chile. Seguiu para a Argélia e depois a Europa: Alemanha, Áustria, Itália.
Muitas vezes em troca de pouso e comida Vandré percorreu povoados do interior da Grécia, Bulgária e Iugoslávia. Na França, fez uma pausa de 18 meses e ali, em novembro de 1970, gravou seu último LP: "Das Terras de Benvirá".
Em março do ano seguinte, foi detido pela Polícia francesa por porte de haxixe e obrigado a deixar o país.
Vandré consegue retornar a Santiago, mas o exílio já se tornara um pesadelo e o artista recorria cada vez mais ao uso de drogas. Num Chile àquela altura convulsionado, com toques de recolher, à beira do golpe militar, acentuaram-se as crises depressivas do compositor, num processo de desintegração psicológica que o fez submeter-se a tratamento psiquiátrico durante 45 dias.
Enquanto isto, no Brasil, sua família articulava negociações para que ele pudesse voltar. E assim, em Julho de 1973, dois meses antes de as tropas do general Pinochet tomarem o poder e cortar as mãos do cantor de protesto chileno Vitor Jara em pleno Estádio Nacional, Geraldo Vandré deixou Santiago, embarcando ao Rio de Janeiro.
Tão obscuro quanto sua saída foi o seu retorno ao país. O autor de “Pra não dizer que não falei de flores” fez uma única viagem de volta, mas desembarcou duas vezes no Brasil. Houve um desembarque real e um segundo desembarque, fictício.
O primeiro foi noticiado pelo Jornal do Brasil em sua edição de sexta-feira, 18 de Julho de 1973. “O cantor e compositor Geraldo Vandré foi preso, ontem, no aeroporto do Galeão, ao desembarcar de um avião. O artista foi levado para uma unidade militar, onde se encontra incomunicável.”
Seguiram-se 33 dias de absoluto silêncio. É quando é apresentado o desembarque fictício de Vandré em terras brasileiras. Na noite de 21 de agosto de 1973, a câmera do Jornal Nacional da TV Globo focaliza a escada de um Electra da Varig no aeroporto de Brasília.
O angulo vai se fechando e o rosto de Geraldo Vandré, barbado e com a expressão cansada, aparece na tela. Neste momento o locutor informa que “o cantor e compositor Geraldo Vandré acaba de voltar ao Brasil”. O artista desce a escada e caminha lentamente pela pista do aeroporto.
A seguir é mostrada a primeira fala de Vandré à televisão brasileira desde 1968. Cabisbaixo e com a voz trêmula, ele afirma que pretendia integrar suas composições “à realidade nova do Brasil, que espero encontrar em um clima de paz e tranqüilidade” e queixa-se de que sua música foi apropriada por grupos políticos contra a sua vontade:
“Vocês sabem, a arte às vezes é usada por um grupo determinado com interesses políticos e isso transcende a vontade do próprio autor. Eu, o que tenho a dizer é que, na verdade, nunca estive vinculado ou comprometido em toda a minha vida com qualquer grupo político.”
Por fim, ele declara que dali pra frente desejava “só fazer canções de amor e paz”.
É neste espaço de tempo entre a chegada de Vandré em 17 de julho de 1973 e esta "volta" apresentada pela TV Globo, 33 dias depois - que melhor se situa a pergunta formulada no samba de Benito di Paula: “O que foi que fizeram com ele?”
Sabe-se que após aquele primeiro período incomunicável numa unidade do I Exército, no Rio de Janeiro, o compositor também esteve preso numa carceragem da Polícia Federal em Brasília.
E foi provavelmente entre uma cela e outra que a polícia política conseguiu arranjar a retratação ou confissão que Vandré apresentou ao público através do Jornal Nacional.
Geraldo Vandré - O que aconteceu de fato, com ele?
O fato é que, quando num daqueles dias de 1974, Benito di Paula avistou Geraldo Vandré “dizendo um poema para um poste”, o autor de “Disparada” já era uma sombra de si mesmo. Estava com 38 anos, mais gordo e grisalho, vagando a esmo sozinho pelas ruas de São Paulo. E dizia não ver televisão; não ouvir rádio; não ler jornal; não ter emprego; e não pagar imposto.
E recusava-se a gravar disco, fazer shows ou dar entrevistas: “Nada do que eu possa dizer, fazer ou pensar - dá no mesmo ser publicado ou não, porque não tem nenhum valor” , se auto-analisava sem nenhuma indulgência.
Aspectos que tornavam a pergunta do refrão do samba ”Tributo a um rei esquecido” cada vez mais pertinente e atual. “E eu continuo querendo saber: cadê ele? Já deram anistia pra ele? O que foi que fizeram com ele?” , reclama ainda hoje Benito di Paula.
Nos últimos anos alguns jornalistas tentaram fazer esta pergunta ao próprio Geraldo Vandré. E ele, na maioria das vezes, se esquiva da resposta. “A curiosidade sobre isso é uma paranoia, uma doença. Não me sinto responsável em elucidar isso”, respondeu a Brenda Fucuta do Jornal do Brasil.
A jornalista Maria do Rosário Caetano, de O Estado de S. Paulo, foi direta: “Você foi torturado?” A resposta de Vandré, também: “Nunca. E me nego a continuar falando sobre este assunto.”
E para um jovem repórter de O Globo que insistiu em perguntar-lhe se ele era uma vítima do regime militar, Vandré esbravejou com o dedo em riste e os olhos verdescinza arregalados: “Vítima é você! Vítima é você!”
Logo após o encerramento do III FIC, em Outubro de 1968, o então coronel Octávio Costa escreveu no Jornal do Brasil um artigo de grande repercussão intitulado “As flores do Vandré” , no qual ele defendia os militares - "não vivem sem razões os que asseguram à imensa maioria da nação o direito de continuar vivendo democraticamente" - , e cobrava punição para o compositor sob o argumento de que a Justiça não poderia se calar “diante do delito, do delito claramente configurado, à luz dos refletores, contra a lei vigente”.
Numa entrevista de mais de três horas concedida a Paulo César de Araújo, autor do livro "Eu não sou cachorro, não", o general responde sobre Geraldo Vandré ter sido ou não torturado:
“Eu acredito que ele deve ter sido preso e não descarto a possibilidade de ter recebido alguns tapas, uns empurrões contra a parede, 'vamos, faz uma música aí agora', coisas assim. A indignação dos militares contra ele foi tão grande que alguns algozes podem ter dado uns safanões. Já tortura em pau-de-arara, choque elétrico, não creio que tenha sofrido, muito menos lavagem cerebral, que é um negócio bastante requintado”.
Embora negue que tenha havido o uso das formas clássicas de tortura, Octávio Costa é a primeira autoridade militar do governo Médici que admite a possibilidade de que Vandré sofreu algum tipo de coerção física por parte de elementos do Exército.
Bem, de tudo isto, ressalte-se que aquela pergunta (ou paranoia, como diz Vandré), que se repete por três vezes no samba “Tributo a um rei esquecido” - "o que foi que fizeram com ele?" - , só pôde ser veiculada nas rádios do Brasil nos anos 70, porque Benito di Paula valeu-se mais uma vez da linguagem da fresta, driblando um comunicado expedido pela Polícia Federal que proibia a "transcrição ou divulgação de qualquer notícia, comentário ou referência" a respeito do cantor e compositor Geraldo Vandré.”
Benito di Paula chamou-o então de “rei”, valendo-se de imagens presentes na canção “Disparada”, em que Vandré diz “na boiada já fui boi / boiadeiro já fui rei”. E esta era realmente a única forma possível de se cantar brasileiros mortos, presos ou banidos pelo regime de 1964.
Tributo a um rei esquecido