O PATRIOTISMO CRÍTICO DE BRUCE SPRINGSTEEN
("vai ser uma longa caminhada para casa")
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"O ato mais político não será um ato individual, algo que acontece na obscuridade, no silêncio, quando alguém toma uma decisão específica que afeta o seu mundo mais próximo?"
Bruce Springsteen
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Lançada em 1984, no álbum de mesmo nome, "Born in the USA" é o maior hit de um dos maiores cantores da música popular norte-americana, Bruce Springsteen. Até hoje, mais de 40 anos após seu lançamento, ela é aquele tipo de música que você ouve quer queira ou não, já que toca em tudo que é lugar — mesmo nos locais mais inusitados.
Nos Estados Unidos, a música virou uma espécie de hino patriótico. No entanto, conforme publicado pela Far Out Magazine, é possível que se trate da música mais mal-interpretada de Springsteen. Na verdade, ela é uma crítica social à Guerra do Vietnã e às condições econômicas desfavoráveis enfrentadas pelos veteranos de guerra. A letra descreve a experiência dolorosa de um veterano de guerra que não foi acolhido por sua pátria ao retornar a ela.
Bruce a escreveu inspirado pelas histórias de veteranos de guerra que ele conheceu durante a década de 1980. Na época, muitos deles lutavam para conseguir empregos, ao mesmo tempo que tinham que lidar com os traumas e sequelas da guerra: além dos debilitantes sintomas do estresse pós-traumático, muitos voltaram do Vietnã com problemas físicos, como membros amputados ou dependendo de necessidades especiais como cadeira de rodas.
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Nascido numa cidade morta
O primeiro chute que eu levei me levou ao chão
Você acaba como um cachorro que apanhou até não poder mais
Até que você passa metade da vida só tentando se esconder"
Fui me meter nessa em minha cidade natal
Quando eles colocaram um fuzil na minha mão
Me enviaram para uma terra estrangeira
Para matar o homem amarelo
Voltei para casa e tentei trabalhar na refinaria
O encarregado disse: "Filho, não depende de mim..."
Fui ver o cara da V.A. [Departamento de assuntos de veteranos]
E ele disse: "Filho, você não entende?"
Tinha um irmão em Khe Sahn
Lutando contra os vietcongues
Eles ainda estão lá, ele é que se foi
Ele tinha uma filhinha em Saigon
Eu tenho uma foto dele com ela nos braços
Pelos escuros das prisões
Perto do combustível em chamas
Há dez anos estou na estrada
Não tenho para onde correr e nem para onde ir
Born in the USA | Bruce Springsteen (1984)
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Apesar dos esforços de Bruce Springsteen em seus shows para esclarecer o verdadeiro significado da música, até hoje "Born in the U.S.A." é frequente (e equivocadamente) utilizada em eventos patrióticos.
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Born in the USA
Por Bruce Springsteen
Treze anos depois do fim da Guerra do Vietnã, inspirado por Bob Muller e Ron Kovic, escrevi e gravei a minha história de um soldado. Era uma canção de protesto, e quando a ouvi trovejando através das gigantescas colunas do estúdio da Hit Facrory, soube logo que era uma das melhores coisas que já tinha feito. Era um blues de soldado americano, em que os versos eram um relato do que aconteceu, e o refrão uma declaração da única coisa que jamais lhe seria negada: o lugar de nascimento e o direito a todo o sangue, confusão, bênçãos e graça que vinham com ele. Ao darmos corpo e alma, ganhamos o direito – ou muito mais do que o direito – de reclamar e moldar o pedaço de terra onde nascemos.
Born in the USA se mantém como uma das minhas melhores e mais incompreendidas canções. A combinação dos seus versos blues "para baixo" e do refrão declarativo "para cima", a exigência do direito de ter uma voz patriota "crítica", juntamente com o orgulho do lugar onde se nasce, parecia ser conflituosa demais (ou então era simplesmente incômoda!) para alguns dos ouvidos mais despreocupados e menos perspicazes. (É assim, meu amigo, que a bola do pop político pode rolar.) Os discos são, muitas vezes, testes auditivos de Roscharch; ouvimos aquilo que queremos ouvir.
Um compositor escreve para ser compreendido. Será uma tomada de posição política? Será que o som e a forma da canção transmitem o seu conteúdo? Vindo de Nebraska, eu tinha acabado de fazer isso de ambas as formas. Aprendi uma dura lição de como o pop e a imagem do pop eram apreendidos, mas ainda assim eu não teria feito qualquer desses discos de forma diferente. Ao longo dos anos, tenho tido a oportunidade de reinterpretar Born in the USA, especialmente em versões acústicas que dificilmente seriam mal-entendidas, mas essas interpretações eram sempre comparadas com o original e ganhavam parte do seu novo poder a partir da experiência anterior que o público tivera com a versão do álbum. No disco, Born in the USA surgia na sua forma mais poderosa. Se eu tentasse enfraquecer ou alterar a música, acredito que até poderia ter ficado com um disco que teria sido mais facilmente compreendido, mas que não seria tão gratificante.
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THE GHOST OF TOM JOAD
Por Bruce Springsteen
The Ghost of Tom Joad resultou de um debate interior – que durou uma década – que eu inciara após o
sucesso de Born in the USA. Esse debate centrava-se numa única questão: qual o lugar de um homem rico? Se era verdade que era "mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus", eu não transporia essas portas peroladas em breve, o que, na verdade, não era um problema; havia ainda muito trabalho a fazer aqui na Terra. Era esse o ponto de partida de The Ghost of Tom Joad. O que nos compete fazer no pouco tempo que aqui passamos?
sucesso de Born in the USA. Esse debate centrava-se numa única questão: qual o lugar de um homem rico? Se era verdade que era "mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus", eu não transporia essas portas peroladas em breve, o que, na verdade, não era um problema; havia ainda muito trabalho a fazer aqui na Terra. Era esse o ponto de partida de The Ghost of Tom Joad. O que nos compete fazer no pouco tempo que aqui passamos?
Ao iniciar as gravações, contava apenas comigo, com a minha guitarra acústica e com o esboço do "Tom Joad" que tentei escrever para a banda. Editei a canção até a versão que consta no álbum e tive a certeza do que desejava fazer. Retomaria o caminho que tinha abandonado com Nebraska, situaria as histórias em meados dos anos 1990 e na terra onde atualmente vivia: a Califórnia. A música era mínima, as melodias muito simples; os ritmos e arranjos austeros definiam quem eram essas pessoas e como se expressavam. Não transportavam grandes fardos do passado, eram macilentas e de expressão direta, embora a maior parte do que tinham para dizer se perdesse no silêncio entre as palavras. Eram nômades e viviam vidas difíceis, complicadas, metade das quais fora deixada para trás num outro mundo, num outro país.
The Ghost of Tom Joad abordava os efeitos da crescente divisão econômica das décadas de 1980 e 1990, dos tempos difíceis e das consequências sentidas por muitas das pessoas cujo trabalho e sacrfício criaram a América, e cujo esforço é essencial para o nosso dia a dia. Somos uma nação de imigrantes, e ninguém sabe quem são aqueles que passam hoje as nossas fronteiras, pessoas cuja história pode acrescentar uma página importante à história americana. Agora, nos primeiros anos deste século, tal como na virada do último, estamos de novo em guerra com os nossos "novos americanos". Tal como no anterior, as pessoas chegarão, passarão por dificuldades e preconceitos, combaterão as forças mais reacionárias e os corações mais empedernidos do seu lar adotivo e provarão ser resistentes e vencedoras.
Eu sabia que The Ghost of Tom Joad não atrairia a maioria do meu público. No entanto, estava certo de que as canções que nele constavam vinham confirmar novamente o melhor que sou capaz de fazer. O álbum trazia algo novo, mas fazia também uma referência às coisas que eu tentara defender e que ainda desejava ter como meus cavalos de batalha enquanto compositor.
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Homens caminham ao longo da estrada de ferro
Vão para algum lugar, não há retorno
Helicópteros da polícia surgem acima da encosta
Sopa quente num acampamento debaixo da ponte
A fila de desamparados dobra a esquina
Bem-vindos à nova ordem mundial
Famílias dormindo em seus carros no sudoeste
Sem casa, sem emprego, sem paz, sem descanso
A estrada está viva esta noite
Mas ninguém se engana sobre onde ela vai dar
Estou sentado à luz da fogueira
Procurando pelo fantasma de Tom Joad
Ele puxa um livro de orações do saco de dormir
O pastor acende o cigarro e dá uma tragada
À espera de quando os últimos serão primeiros e os primeiros os últimos
Em uma caixa de papelão embaixo do túnel
Você tem uma passagem só de ida para a terra prometida
Você tem um buraco na barriga e uma arma na mão
Dormindo sobre um travesseiro de pedra
Tomando banho no aqueduto da cidade
A estrada está viva esta noite
Mas para onde ela está indo, todo mundo sabe
Estou sentado aqui na luz da fogueira
Esperando pelo fantasma de Tom Joad
Agora Tom disse: "Mãe, onde quer que haja um policial batendo em alguém
Onde quer que um recém-nascido chore de fome
Onde haja uma luta contra o sangue e o ódio no ar
Procure por mim, mãe, eu estarei lá.
Onde quer que alguém esteja lutando por um lugar para ficar
Ou um emprego decente ou uma mão amiga.
Onde quer que alguém esteja lutando para ser livre,
Olhe nos olhos deles, mãe, você me verá."
A estrada está viva esta noite
Mas todo mundo sabe onde ela vai dar
Estou sentado aqui na luz da fogueira
Com o fantasma do velho Tom Joad
Com o fantasma do velho Tom Joad
Com o fantasma do velho Tom Joad
The Ghost of Tom Joad | Bruce Springsteen (1995)
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Em 21 de novembro de 1995, entrei no palco do State Theater em Nova Brunswick, New Jersey, para o meu primeiro concerto totalmente acústico e solo desde o início dos anos 1970 no bar Ma's Kansas City. teria de aguentar o público durante duas horas e meia... sem uma banda.
A nudez e o drama intenso de uma atuação solo constituem uma revelação nervosa. Tudo se resume a um homem, uma guitarra e "vocês", o público. Aquilo que é posto em relevo é o núcleo emocional da canção. Revelam-se os ossos descarnados das nossas relações uns com os outros e com a música. Se a canção foi bem escrita, o público a aguentará na sua forma mais simples: a de esqueleto. "Born in the USA" explodiu num blues ao estilo do Delta do Mississipi, com o seu significado verdadeiramente exposto. "Darkness" pairou em toda a sua solidão. Os fãs tinham que respeitar o silêncio, e assim o fizeram. Muitas das minhas personagens eram homens isolados, e havia que sentir o espaço e o vazio em redor e dentro deles. Era preciso escutar os seus pensamentos, de modo a tornar viva a dureza da sua paisagem. A magia dessa música residia na sua escala dinãmica, desde um crescendo de guitarra a um silêncio sussurrado.
Esses shows reavivaram-me. Inspiraram-me a escavar mais profundamente o núcleo da minha composição musical, e mandaram-me, todas as noites, de volta ao meu quarto de hotel, para ali passar as primeiras horas da manhã com o meu caderno de canções, com o qual trabalhava no novo estilo que encontrei.
Terminei a turnê comprometido de novo com as composições "temáticas", algo que tinha abandonado nos últimos álbuns. Por fim, me senti outra vez confortável na minha pele. Havia novas canções para escrever.
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"vai ser uma longa caminhada para casa"
cansado?
que nada
ainda há moinhos
no fim da estrada
grill
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#Américas
#Repecho