terça-feira, 21 de janeiro de 2025



O PATRIOTISMO CRÍTICO DE BRUCE SPRINGSTEEN 
("vai ser uma longa caminhada para casa")

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"O ato mais político não será um ato individual, algo que acontece na obscuridade, no silêncio, quando alguém toma uma decisão específica que afeta o seu mundo mais próximo?" 

Bruce Springsteen

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Lançada em 1984, no álbum de mesmo nome, "Born in the USA" é o maior hit de um dos maiores cantores da música popular norte-americana, Bruce Springsteen. Até hoje, mais de 40 anos após seu lançamento, ela é aquele tipo de música que você ouve quer queira ou não, já que toca em tudo que é lugar — mesmo nos locais mais inusitados.

Nos Estados Unidos, a música virou uma espécie de hino patriótico. No entanto, conforme publicado pela Far Out Magazine, é possível que se trate da música mais mal-interpretada de Springsteen. Na verdade, ela é uma crítica social à Guerra do Vietnã e às condições econômicas desfavoráveis enfrentadas pelos veteranos de guerra. A letra descreve a experiência dolorosa de um veterano de guerra que não foi acolhido por sua pátria ao retornar a ela.

Bruce a escreveu inspirado pelas histórias de veteranos de guerra que ele conheceu durante a década de 1980. Na época, muitos deles lutavam para conseguir empregos, ao mesmo tempo que tinham que lidar com os traumas e sequelas da guerra: além dos debilitantes sintomas do estresse pós-traumático, muitos voltaram do Vietnã com problemas físicos, como membros amputados ou dependendo de necessidades especiais como cadeira de rodas.

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Nascido numa cidade morta
O primeiro chute que eu levei me levou ao chão
Você acaba como um cachorro que apanhou até não poder mais
Até que você passa metade da vida só tentando se esconder"

Fui me meter nessa em minha cidade natal
Quando eles colocaram um fuzil na minha mão
Me enviaram para uma terra estrangeira
Para matar o homem amarelo

Voltei para casa e tentei trabalhar na refinaria
O encarregado disse: "Filho, não depende de mim..."
Fui ver o cara da V.A. [Departamento de assuntos de veteranos]
E ele disse: "Filho, você não entende?"

Tinha um irmão em Khe Sahn
Lutando contra os vietcongues
Eles ainda estão lá, ele é que se foi
Ele tinha uma filhinha em Saigon
Eu tenho uma foto dele com ela nos braços

Pelos escuros das prisões
Perto do combustível em chamas
Há dez anos estou na estrada
Não tenho para onde correr e nem para onde ir

Born in the USA | Bruce Springsteen (1984)

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Apesar dos esforços de Bruce Springsteen em seus shows para esclarecer o verdadeiro significado da música, até hoje "Born in the U.S.A." é frequente (e equivocadamente) utilizada em eventos patrióticos.

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Born in the USA 

Por Bruce Springsteen


Treze anos depois do fim da Guerra do Vietnã, inspirado por Bob Muller e Ron Kovic, escrevi e gravei a minha história de um soldado. Era uma canção de protesto, e quando a ouvi trovejando através das gigantescas colunas do estúdio da Hit Facrory, soube logo que era uma das melhores coisas que já tinha feito. Era um blues de soldado americano, em que os versos eram um relato do que aconteceu, e o refrão uma declaração da única coisa que jamais lhe seria negada: o lugar de nascimento e o direito a todo o sangue, confusão, bênçãos e graça que vinham com ele. Ao darmos corpo e alma, ganhamos o direito – ou muito mais do que o direito – de reclamar e moldar o pedaço de terra onde nascemos. 

Born in the USA se mantém como uma das minhas melhores e mais incompreendidas canções. A combinação dos seus versos blues "para baixo" e do refrão declarativo "para cima", a exigência do direito de ter uma voz patriota "crítica", juntamente com o orgulho do lugar onde se nasce, parecia ser conflituosa demais (ou então era simplesmente incômoda!) para alguns dos ouvidos mais despreocupados e menos perspicazes. (É assim, meu amigo, que a bola do pop político pode rolar.) Os discos são, muitas vezes, testes auditivos de Roscharch; ouvimos aquilo  que queremos ouvir. 

Um compositor escreve para ser compreendido. Será uma tomada de posição política? Será que o som e a forma da canção transmitem o seu conteúdo? Vindo de Nebraska, eu tinha acabado de fazer isso de ambas as formas. Aprendi uma dura lição de como o pop e a imagem do pop eram apreendidos, mas ainda assim eu não teria feito qualquer desses discos de forma diferente. Ao longo dos anos, tenho tido a oportunidade de reinterpretar Born in the USA, especialmente em versões acústicas que dificilmente seriam mal-entendidas, mas essas interpretações eram sempre comparadas com o original e ganhavam parte do seu novo poder a partir da experiência anterior que o público tivera com a versão do álbum. No disco,  Born in the USA surgia na sua forma mais poderosa. Se eu tentasse enfraquecer ou alterar a música, acredito que até poderia ter ficado com um disco que teria sido mais facilmente compreendido, mas que não seria tão gratificante. 

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THE GHOST OF TOM JOAD

Por Bruce Springsteen 



The Ghost of Tom Joad  resultou de um debate interior – que durou uma década –  que eu inciara após o
sucesso de Born in the USA. Esse debate centrava-se numa única questão: qual o lugar de um homem rico?  Se era verdade que era "mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus", eu não transporia essas portas peroladas em breve, o que, na verdade, não era um problema; havia ainda muito trabalho a fazer aqui na Terra. Era esse o ponto de partida de The Ghost of Tom Joad. O que nos compete fazer no pouco tempo que aqui passamos?   

Ao iniciar as gravações, contava apenas comigo, com a minha guitarra acústica e com o esboço do "Tom Joad" que tentei escrever para a banda. Editei a canção até a versão que consta no álbum e tive a certeza do que desejava fazer. Retomaria o caminho que tinha abandonado com Nebraska, situaria as histórias em meados dos anos 1990 e na terra onde atualmente vivia: a Califórnia. A música era mínima, as melodias muito simples; os ritmos e arranjos austeros definiam quem eram essas pessoas e como se expressavam. Não transportavam grandes fardos do passado, eram macilentas e de expressão direta, embora a maior parte do que tinham para dizer se perdesse no silêncio entre as palavras. Eram nômades e viviam vidas difíceis, complicadas, metade das quais fora deixada para trás num outro mundo, num outro país. 

The Ghost of Tom Joad abordava os efeitos da crescente divisão econômica das décadas de 1980 e 1990, dos tempos difíceis e das consequências sentidas por muitas das pessoas cujo trabalho e sacrfício criaram a América, e cujo esforço é essencial para o nosso dia a dia. Somos uma nação de imigrantes, e ninguém sabe quem são aqueles que passam hoje as nossas fronteiras, pessoas cuja história pode acrescentar uma página importante à história americana. Agora, nos primeiros anos deste século, tal como na virada do último, estamos de novo em guerra com os nossos "novos americanos". Tal como no anterior, as pessoas chegarão, passarão por dificuldades e preconceitos, combaterão as forças mais reacionárias e os corações mais empedernidos do seu lar adotivo e provarão ser resistentes e vencedoras.

Eu sabia que The Ghost of Tom Joad não atrairia a maioria do meu público. No entanto, estava certo de que as canções que nele constavam vinham confirmar novamente o melhor que sou capaz de fazer. O álbum trazia algo novo, mas fazia também uma referência às coisas que eu tentara defender e que ainda desejava ter como meus cavalos de batalha enquanto compositor. 

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Homens caminham ao longo da estrada de ferro 
Vão para algum lugar, não há retorno 
Helicópteros da polícia surgem acima da encosta 
Sopa quente num acampamento debaixo da ponte 
A fila de desamparados dobra a esquina 
Bem-vindos à nova ordem mundial 
 Famílias dormindo em seus carros no sudoeste 
Sem casa, sem emprego, sem paz, sem descanso 

A estrada está viva esta noite 
Mas ninguém se engana sobre onde ela vai dar 
Estou sentado à luz da fogueira 
 Procurando pelo fantasma de Tom Joad 

Ele puxa um livro de orações do saco de dormir 
O pastor acende o cigarro e dá uma tragada 
À espera de quando os últimos serão primeiros e os primeiros os últimos 
Em uma caixa de papelão embaixo do túnel 
Você tem uma passagem só de ida para a terra prometida 
Você tem um buraco na barriga e uma arma na mão 
Dormindo sobre um travesseiro de pedra 
Tomando banho no aqueduto da cidade 

A estrada está viva esta noite 
Mas para onde ela está indo, todo mundo sabe 
Estou sentado aqui na luz da fogueira 
Esperando pelo fantasma de Tom Joad 
Agora Tom disse: "Mãe, onde quer que haja um policial batendo em alguém 
Onde quer que um recém-nascido chore de fome 
Onde haja uma luta contra o sangue e o ódio no ar 
Procure por mim, mãe, eu estarei lá. 
Onde quer que alguém esteja lutando por um lugar para ficar 
Ou um emprego decente ou uma mão amiga. 
Onde quer que alguém esteja lutando para ser livre, 
Olhe nos olhos deles, mãe, você me verá." 

A estrada está viva esta noite 
Mas todo mundo sabe onde ela vai dar
Estou sentado aqui na luz da fogueira 
Com o fantasma do velho Tom Joad 

Com o fantasma do velho Tom Joad 
Com o fantasma do velho Tom Joad 

The Ghost of Tom Joad | Bruce Springsteen (1995)


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Em 21 de novembro de 1995, entrei no palco do State Theater em Nova Brunswick, New Jersey, para o meu primeiro concerto totalmente acústico e solo desde o início dos anos 1970 no bar Ma's Kansas City. teria de aguentar o público durante duas horas e meia... sem uma banda.

A nudez e o drama intenso de uma atuação solo constituem uma revelação nervosa. Tudo se resume a um homem, uma guitarra e "vocês", o público. Aquilo que é posto em relevo é o núcleo emocional da canção. Revelam-se os ossos descarnados das nossas relações uns com os outros e com a música. Se a canção foi bem escrita, o público a aguentará na sua forma mais simples: a de esqueleto. "Born in the USA" explodiu num blues ao estilo do Delta do Mississipi, com o seu significado verdadeiramente exposto. "Darkness" pairou em toda a sua solidão. Os fãs tinham que respeitar o silêncio, e assim o fizeram. Muitas das minhas personagens eram homens isolados, e havia que sentir o espaço e o vazio em redor e dentro deles. Era preciso escutar os seus pensamentos, de modo a tornar viva a dureza da sua paisagem. A magia dessa música residia na sua escala dinãmica, desde um crescendo de guitarra a um silêncio sussurrado. 

Esses shows reavivaram-me. Inspiraram-me a escavar mais profundamente o núcleo da minha composição musical, e mandaram-me, todas as noites, de volta ao meu quarto de hotel, para ali passar as primeiras horas da manhã com o meu caderno de canções, com o qual trabalhava no novo estilo que encontrei. 

Terminei a turnê comprometido de novo com as composições "temáticas", algo que tinha abandonado nos últimos álbuns. Por fim, me senti outra vez confortável na minha pele. Havia novas canções para escrever.

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"vai ser uma longa caminhada para casa"

cansado?
que nada
ainda há moinhos 
no fim da estrada

grill 

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#Américas
#Repecho

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025


 O GRANDE ENCONTRO 

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O piano tocou uma lenta melodia fúnebre, 
E a cidade foi iluminada por uma fria lua de Natal,
Os pais choraram e os mineiros gemeram, 
"Veja o que a sua ganância por dinheiro fez".

Woody Guthrie (1961)

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Ei, ei Woody Guthrie, eu te escrevi uma canção
Sobre um estranho mundo que está surgindo 
Parece doente e faminto, cansado e debilitado
Parece que está morrendo e recém nasceu. 

Bob Dylan (1961) 

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Não sei dizer quando me ocorreu a ideia de escrever minhas próprias canções. Eu não tinha produzido nada para definir o modo como me sentia a respeito do mundo que se comparasse ou fosse a metade das letras de música folk que eu vinha cantando. Acho que isso acontece em etapas. Você não acorda um dia e simplesmente decide que precisa escrever canções, especialmente se você é um cantor que tem muitas delas e está aprendendo mais todos os dias. É preciso que apareçam oportunidades para que você converta algo – algo que existe em algo que não existe. Esse pode ser o começo. Às vezes você quer apenas fazer as coisas do seu jeito, quer ver por si mesmo o que está por trás da cortina de névoa. Não é como se você visse canções se aproximando e as convidasse para entrar. Não é fácil assim. Você quer escrever canções maiores que a vida. Quer dizer algo sobre coisas estranhas que aconteceram com você, coisas estranhas que viu. Você tem que saber e compreender algo, e depois passar para o vernáculo. A precisão arrepiante que os antigos usavam para chegar às suas canções não é pouca coisa. Às vezes você pode escutar uma canção e sua mente dar uma salto à frente. Esse padrão pode se repetir na maneira como você anda pensando nas coisas. Jamais pensei nas canções como "boas" ou "ruins", apenas tipos diferentes de boas. 

Algumas delas podem se referir a casos verídicos. Eu tinha escutado por aí uma canção chamada "I Dreamed I Saw Joe Hill". 

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Joe Hill | Joan Baez | Woodstock (1969)  

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Eu sabia que Joe Hill era um sujeito real e importante. Não sabia quem ele era, por isso perguntei a Izzy no Folklore Center. Izzy sacou alguns panfletos sobre ele da sala dos fundos e me deu para ler. O que eu li poderia ter saído de um romance de mistério. Joe Hill era um imgrante sueco que lutou na guerra mexicana. Tinha levado uma vida carente e pobre, era um líder sindical do Oeste por volta de 1910, uma figura messiânica que queria abolir o sistema salarial do capitalismo – um mecãnico, músico e poeta. Chamavam-no de Robert Burns dos trabalhadores. 

Joe escreveu a canção "Pie in the Sky" e foi precursor de Woody Guthrie. Era tudo o que eu precisava saber. Ele foi condenado com base em provas circunstanciais pelo crime de assassinato e executado por um pelotão de fuzilamento em Utah. A história de sua vida é pesada e profunda. Ele era um organizador dos Wooblies, a seção combatente da classe trabalhadora americana. Hill é julgado pelo assassinato do dono de um armazém e do filho deste em um assalto mixuruca à mão armada, e sua única defesa é dizer: "Provem!".  Antes de morrer, o filho do comerciante abre fogo contra alguém, mas não há prova de que a bala tenha acertado em qualquer coisa. Contudo, Joe tinha um ferimento de bala, e isso parece bastante incriminador. Cinco pessoas sofrem ferimento de bala na mesma noite, são tratadas no mesmo hospital, liberadas, e todas elas desaparecem. Joe diz que estava em outro local na hora do crime, mas não diz onde, nem com quem. Não fornece quaisquer nomes, nem mesmo para salvar a própria pele. A crença geral é de que havia uma mulher envolvida, uma mulher que Joe não quis envergonhar. A coisa fica mais esquisita e complicada. Outro cara, um bom amigo de Joe, desaparece no dia seguinte. 

Está tudo bem enrolado. Joe é amado por todos os trabalhadores da nação – mineiros e açougueiros, pintores de placas e ferreiros, estucadores, encanadores, metalúrgicos; quem quer que fossem, ele os uniu e lutou pelos direitos de todos, arriscou sua vida para tornar as coisas melhores para todos da classe baixa, os desfavorecidos –, os trabalhadores mais mal-remunerados e maltratados do país. Ao ler a história dele, seu caráter se revela, e você percebe que ele não é o tipo que roubaria e mataria um funcionário de armazém por acaso. Isso simplesmente não poderia acontecer com ele. É impossível que tivesse feito algo assim por un trocados. Tudo em sua vida remete a honra e probidade. Era um andarilho e um guardião, o tempo todo patrulhando. Para os políticos e industrialistas que o odiavam, entretanto, ele era um criminoso empedernido e um inimigo da sociedade. Eles esperaram durante anos por uma oportunidade para se livrar dele. Joe foi declarado culpado antes mesmo de o julgamento começar. 

A história toda é espantosa. Em 1915, houve passeatas e comícios de massa a favor dele que encheram as ruas em todas as grandes cidades americanas – Cleveland, Indiapolis, St. Louis, Brooklin, Detroit, muitas mais –, onde quer que houvesse trabalhadores e sindicatos. Até o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, tentou fazer com que as autoridades de Utah revissem o caso, mas o governador de Utah não deu a mínima para o presidente. Em seus últimos momentos, Joe diz: "Espalhem minhas cinzas em qualquer lugar, menos Utah". 

A canção "Joe Hill" foi escrita um tempo depois disso. Quanto a canções de protesto, eu tinha ouvido umas poucas. "Bourgeois Blues", a canção de Leadbelly; "jesus Christ" e "Ludlow Massacre", de Woody; "Strange Fruit", a canção de Billie Holliday, algumas outras – e todas eram melhores que aquela. Canções de protesto são difíceis de escrever sem que o resultado seja maçante e unidimensional. Você tem que mostrar às pessoas um lado delas mesmas que elas não sabem que existe. A canção "Joe Hill" nem chega perto, mas, se já houve alguém que poderia inspirar uma canção, foi ele. Joe tinha chamas no olhar. 

Imaginei que, se eu tivesse escrito a canção, teria imortalizado Joe de maneira diferente – mais como Casey Jones ou Jesse James. Era o que devia ter sido feito. Pensei em dois caminhos. Um era intitular a canção "Scatter My Ashes Anyplace but Utah" e fazer dessa linha o refrão. O outro era fazer como a canção "Long Black Veil", na qual um homem fala do túmulo... uma canção do além. É uma balada na qual um homem abre mão de sua vida para não desgraçar uma certa mulher e tem que pagar pelo crime de outro por causa do que ele não pode dizer. Quanto mais pensava sobre isso, mais "Long Black Veil" parecia uma canção que poderia ter sido escrita pelo próprio Joe Hill, a sua última.

Não compus uma canção para Joe Hill. Pensei em como faria, mas não fiz. A primeira canção de alguma importância substancial que acabei escrevendo foi para Woody Guthrie. 

Bob Dylan | Crônicas: Volume Um - p. 62 a 66.

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Estou aqui a mil milhas de casa
Pegando uma estrada em que outros homens sucumbiram
Vejo teu mundo de pessoas e coisas
Vejo pobres e camponeses, príncipes e reis

Ei, ei, Woody Guthrie, eu te escrevi uma canção
Sobre um estranho mundo que está surgindo
Parece doente e faminto, cansado e debilitado
Parece que está morrendo e recém nasceu

Ei, Woody Guthrie, mas eu sei que você sabe
Todas as coisas que estou dizendo e muito mais 
Eu te canto esta canção, mas jamais será o bastante
Pois não há muitos homens que fizeram o que você fez

Esta vai para Cisco e Sonny e também para Leadbelly
E toda gente boa que viajou contigo
Esta vai para o coração e as mãos dos homens
Que chegaram com a poeira e partiram com o vento

Parto amanhã, mas poderia partir agora
Em algum lugar da estrada, algum dia
A derradeira coisa que vou querer fazer
É contar que também encarei uma dura travessia 

Song to Woody | Bob Dylan (1961) 

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Nota: Dylan usou a melodia de "1913 Massacre" 
quando escreveu "Song to Woody".

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Faça uma viagem comigo em 1913
Para Calumet, Michigan, no país do cobre 
Eu vou te levara para um lugar chamado Italian Hall 
Onde os mineiros estão tendo um grande baile de Natal

Eu te levarei por uma porta e subirei uma escada alta
Cantoria e dança serão ouvidas em todos os lugares 
Eu deixarei você apertar a mão das pessoas que você vir
E assistir as crianças dançarem ao redor da grande árvore de Natal.

Você pergunta sobre trabalho e pergunta sobre pagamento,
Eles dirão que ganham menos de um dólar por dia,
Trabalhando nas minas de cobre, arriscando suas vidas,
Então é divertido passar o Natal com filhos e esposas.

Há conversas, risos e canções no ar,
E o espírito do Natal está em todo lugar,
Antes que você perceba, você é amigo de todos nós,
E você está dançando e dançando no salão.

Bem, uma garotinha senta-se perto das luzes da árvore de Natal,
Para tocar piano, então você tem que ficar quieto 
Para ouvir toda essa diversão, você não perceberia
Que os capangas do chefe de polícia estão circulando lá fora.

Os capangas do chefe enfiaram suas cabeças na porta,
Um deles gritou e ele berrou, "há um incêndio",
Uma senhora gritou, "não existe tal coisa.
Continue com sua festa, não existe tal coisa". 

Algumas pessoas correram e eram apenas algumas,
"São apenas os bandidos e os fura-greves enganando vocês".
Um homem agarrou sua filha e a carregou para baixo,
Mas os bandidos seguraram a porta e ele não conseguiu sair.

E então outros seguiram, cem ou mais, 
Mas quase todos permaneceram no chão, 
Os bandidos armados riram de sua piada assassina,
Enquanto as crianças foram sufocadas nas escadas perto da porta.

Nunca vi nada mais terrível
Carregamos, então, nossos filhos para perto da árvore
Os fura-greve lá fora ainda riam de sua "farra"
E foram setenta e três crianças que morreram lá  

O piano tocou uma lenta melodia fúnebre, 
E a cidade foi iluminada por uma fria lua de Natal,
Os pais choraram e os mineiros gemeram,
"Veja o que a sua ganância por dinheiro fez". 

1913 Massacre | Woody Guthrie (1961) 

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#Américas 
#Repecho 

 


BALADA DE JOE HILL 

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“Meu corpo? Ah, se pudesse escolher, 
faria com que fosse reduzido a cinzas 
e deixaria as alegres brisas soprarem meu pó 
até onde existissem algumas flores murchas. 
Talvez essas flores murchas então 
voltassem à vida, florescendo outra vez. 
Este é meu derradeiro e final desejo. 
Boa sorte para vocês!” 

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John dos Passos, o grande escritor norte-americano, escreveu a trilogia “USA”, onde retratou os EUA, em sua face menos sorridente. Foi o retrato de uma América dominada por monopólios e trusts, por organizações de gângsteres e sindicatos infiltrados pela corrupção. Os personagens de “EUA” são anti-heróis amargurados, alguns idealistas e lutadores, outros céticos e cínicos. Numa constante alternância entre ficção e vida real, Dos Passos apresenta, em curtos “flashes” quase cinematográficos, uma galeria de figuras ímpares da História americana, não alinhadas no imenso rebanho, que fazia dos EUA uma coleção de funcionários gabarolas com contas de Banco demais, em palavras do autor. A trilogia foi editada, em Portugal, pela Portugália Editora, nos anos 60 do século passado, em sua coleção “Os Romances Universais”. Paralelo 42 (volume 30) foi traduzido por Helder de Macedo. “1919 e Dinheiro Graúdo” (respectivamente volumes 37 e 38) foram traduzidos por Daniel Gonçalves. Uma das figuras retratadas é a do sueco imigrado Joseph Hillstrom, popularmente conhecido como Joe Hill.



Transcrevemos, a seguir, algumas das linhas dedicadas ao cantor-sindicalista, patentes no 2º volume de “USA” sob o título de 1919 e escrito em 1932: “Um jovem sueco chamado Hillstrom meteu-se ao mar, calejou as mãos em veleiros e velhos cargueiros vagabundos, aprendeu inglês no castelo da proa dos vapores que faziam a ligação entre Estocolmo e Hull, e como todos os suecos sonhava com o Ocidente; quando ele se estabeleceu na América, eles lhe deram um emprego: limpar escarradores em um bar Bowery. Mudou-se para Chicago e trabalhou em uma firma de máquinas. Continuando sua marcha para o Oeste, ele alugou os braços dos senhores da colheita, arrastou-se pelas agências de empregos, pagou muitos dólares de comissão para conseguir trabalho em alguma empresa de construção, andou muitas milhas quando a comida era muito ruim, o capataz muito brutal ou os percevejos muito agressivos no galpão. Participou de greve, na Califórnia, costumava tocar sanfona na porta do barracão, à noite, depois da ceia, tinha um condão peculiar para transformar em rimas os brados de revolta”. 

 As canções de Joe Hill foram cantadas nas cadeias distritais e nas pensões rasas, por desempregados itinerantes, por trabalhadores das jornas. Em todos os lugares, onde um proletário se sentisse perseguido, explorado, marginalizado, soava uma canção de Joe Hill. Damos, novamente, a palavra a John dos Passos: “Em Bingham, Utah, Joe Hill organizou os trabalhadores da Utah Construction Company em um único grande sindicato, conseguiu-lhes salários mais altos, menos horas de trabalho, melhor comida. Joe Hill vivia em Utah, estado dominado pelo fundamentalismo religioso da seita Mórmon. Foi acusado, injustamente, de ter assassinado um merceeiro, chamado Morrison. Sua condenação à morte provocou vastas movimentações”. O cônsul da Suécia e o presidente Wilson tentaram obter um novo julgamento, mas a Suprema Corte do Estado de Utah manteve o veredicto. Joe Hill continuou a escrever suas músicas, no ano em que permaneceu na cadeia. Em 19 de novembro de 1915, eles o colocaram contra a parede da penitenciária de Salt Lake City. “Não percam tempo chorando minha morte. Organizem-se!”, foram as últimas palavras que enviou para seus companheiros. Joe Hill colocou-se diante da parede do pátio da penitenciária, olhou para os canos das espingardas e ele mesmo deu a voz de fogo.

quarta-feira, 2 de março de 2016



Américas


*Por Luis Rubira


Texto publicado no Diário Popular
Fevereiro 08, 2005


Durante o quinto Fórum Social Mundial de 2005 foi erguido, próximo ao anfiteatro Pôr-do-Sol às margens do Guaíba, o Palco Atahualpa Yupanqui, numa homenagem a um dos músicos sul-americanos mais respeitados no mundo inteiro.

Cumpre lembrar que no ano de 2003 Kolla Yupanqui, filho de don Atahualpa, elegeu um especialista em música, que mora na cidade de Pelotas, para representar a Fundação Atahualpa no Brasil.

Enilton Grill é, certamente, uma das pessoas que mais entende da multiplicidade musical produzida nos três continentes americanos. Em sua casa, ao entrar na sala, já nos deparamos com quase dois mil cedês criteriosamente escolhidos.

Conhecido por muitos músicos, recebe discos que vêm de longe e de culturas específicas, tais como os discos de Amâncio Prada - uma pedra preciosa da Galícia.

Para se ter uma idéia, Enilton Grill apresentou um dos maiores músicos do Uruguai, Daniel Viglietti, a um dos maiores nomes da música no Brasil: Dorival Caymmi; e no disco Ramilonga - A estética do frio, entre as pessoas as quais Vítor Ramil agradece está o nome de Enilton Grill.

Há quase dez anos apresenta o programa Américas numa rádio da cidade de Pelotas, já tendo percorrido praticamente todos os caminhos musicais destas vastas culturas de língua portuguesa, espanhola e inglesa.

Seus programas são um luxo não só sonoro mas educativo, pois partem da música mas percorrem caminhos da história, da filosofia, da política e outros 'caminhos no bosque' como diria o filósofo Martin Heidegger.

Na sala de sua casa, além dos discos e de muitos livros especializados em música, podemos ver três quadros na parede que revelam o tripé onde sua lente musical está apoiada: ali aparecem as fotos de Bob Dylan, Chico Buarque e Atahualpa Yupanqui.

Aproveitando esta homenagem que o Fórum Social Mundial presta a Yupanqui, esperamos que a Fundação Atahualpa receba incentivo para sua concretização.

Afinal já está na hora de que o conhecimento de Enilton Grill não fique reduzido a privilegiados ouvintes da cidade de Pelotas mas, tal como as 'coplas' de Yupanqui, seja repartido com outras pessoas de nosso país.

*Mestre em Filosofia pela PUC - Rio Grande do Sul.
Doutor em Filosofia pela USP - Universidade de São Paulo
É membro do Grupo de Estudos Nietzsche da Universidade de São Paulo
e do Groupe International de Recherche sur Nietzsche.
Atualmente é professor do Departamento de Filosofia da UFPel
e coordenador do ciclo 'A Filosofia e o Cinema Político'.

terça-feira, 1 de março de 2016



saravá, dorival!

para caiuá, que deu o nome e o incentivo que faltava.

2002. pedro munhoz me enviou um e-mail pedindo que eu entrasse em contato com daniel viglietti, para intermediar sua participação na semana nacional da cultura brasileira e da reforma agrária, no rio de janeiro.
 
então, foi o que fiz.

eu já sabia que daniel diria sim.

um ano antes eu o tinha entrevistado e uma das perguntas que fiz foi o que faltava a ele fazer que ainda não tinha feito. e ele respondeu que queria muito fazer alguma coisa (qualquer coisa) com os sem terra.

o autor de "a desalambrar" só fez uma exigência: a de que eu fosse junto. e foi o que fiz.

mesmo indo de ônibus cheguei antes do uruguaio que foi de avião. fui recebê-lo no aeroporto do galeão e lá mesmo tentamos um contato com chico. chico buarque. daniel deu a ideia de convidá-lo para participar da semana. teríamos conseguido não estivesse chico na itália.

não faz mal. não tinha chico mas tinha dorival.

no dia seguinte daniel e eu nos encontramos nos corredores da uerj e assistimos juntos aos debates e palestras. depois, à noite, na concha acústica, eu apontei para juliana caymmi, neta de dorival. eu não a conhecia e daniel queria conhecê-la. alguém teria que se apresentar e apresentá-la. e foi o que fiz.

depois do show, numa pequeníssima sala improvisada de camarim (e cheia de gente), eu me apresentei à neta do dorival, apontei para o daniel e disse a ela quem ele era. desnecessário. ela já o conhecia. seu avô alguma vez já tinha falado no nome dele para ela e o marido dela conhecia mais dele do que provavelmente eu mesmo.

ao nos despedirmos daniel deu um cd seu autografado para que ela entregasse a seu avô. e foi o que ela fez.

no dia seguinte, quando nos cruzamos com juliana, ela vinha com um cd do dorival autografado para o daniel. nos olhamos surpresos. quando penso em dorival, penso na bahia. ele estava no rio. em copacabana.

daniel agradeceu o cd, conversamos um pouco e nos despedimos.  juliana ainda estava por perto quando daniel me puxou para um canto e pediu que eu tentasse com ela um encontro dele com o avô dela. e foi que fiz.

ela argumentou que teria que falar com a sua avó pois o seu avô estava passando por alguns problemas de saúde...

o encontro foi marcado com duas condições:

uma a de que fosse um encontro rápido, bastante rápido, não mais que meia hora. nada mais nem nada de mais.  afinal, dorival convalescia.

a outra condição não foi uma condição foi uma pergunta. daniel perguntou se eu poderia ir junto. sim, claro que sim.

dessas coisas que não dá para explicar. passou uma hora. mais meia hora. e mais outra hora. perdemos a hora. já era quase noite quando fomos embora.

hoje é tudo muito rápido. parece que foi ontem. mas não. olhando a foto eu não sou mais o que era e não há mais dorival.

que pena. todo mundo tem pressa. eu tenho saudade. aquela tarde passou depressa. e eu nunca mais tive outra igual.

saravá, dorival!

sábado, 20 de fevereiro de 2016



O velho lobo uiva
e o bardo ainda brada


por Enilton Grill


Bob Dylan
Maio, 24, 1941
Duluth, Minessota
Estados Unidos



Dia desses, Bob Dylan concedeu entrevista para o The Times, e disse que se considera um 'lobo solitário'. "Acho que é a terra onde nasci. As florestas, a vastidão. A terra me criou. Sou selvagem e solitário (...)Sou mais aventureiro do que um homem de relacionamentos", declarou Dylan.

Final dos anos sessenta. Os Beatles estavam na Índia. Os Estados Unidos pareciam embrulhados num cobertor de fúria. Universitários arrebentavam carros estacionados, espatifavam vidraças. 

A guerra do Vietnã colocava o país numa depressão profunda. As cidades rugiam em chamas, os cassetetes estavam descendo. Os testes de ácido seguiam a todo vapor, e o ácido dava a 'atitude certa' para as pessoas.

A nova visão de mundo mudava a sociedade, e todo mundo se movia rápido - em ritmo acelerado. Estroboscópios, luzes negras - as maiores loucuras, a onda do futuro.


Foi nesse contexto que Bob Dylan, sabe-se lá como, abriu caminho para uma torrente de atitude e sabedoria, simbolismo e ambição que explodiu em um turbilhão de inovação, poesia e dissonância. E, ao fazê-lo, completou sua maior obra: a invenção dele mesmo.

"Tento ler através da poeira/ o futuro pra mim já é coisa do passado." Com versos assim, Robert Zimmerman, conhecido no planeta como Bob Dylan, adiantava-se ao seu tempo e, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, não queria apenas ser moderno, ele aspirava ser eterno. E conseguiu.

Aos 74 anos de idade, Bob Dylan está na plenitude. Tanto quanto o esteve na juventude. A prova disso é um de seus mais recente álbum, 'Tempest'.


O nome do álbum recebeu algumas interpretações.

Alguns achavam que era uma referência à peça 'The Tempest', último trabalho de Shakespeare – ideia que Dylan tratou de refutar em uma entrevista afirmando que seu álbum chamava-se apenas 'Tempest'.

E isso significava algo completamente diferente, esclareceu.

Ou seja: nada mais igual ao Dylan de antigamente.

Robert Allen Zimmerman está vivo - já o mataram algumas vezes - e muito vivo.

Longe de muitos dos seus colegas de profissão, Bob Dylan não vive à sombra de um passado de glórias. Coisa de quatro anos atrás, o bardo foi questionado se já considerou a ideia de comercializar a 'nostalgia', de forma similar a vários artistas de sua geração.

Dylan respondeu: "Eu não poderia, mesmo que quisesse ou tentasse. Esses artistas que você está falando, todos eles tinham músicas óbvias e de grande visibilidade. Meu negócio é diferente desses caras. É algo mais desesperado".

Poeta laureado. Profeta num casaco surrado. Napoleão esfarrapado. Um judeu. Um cristão. Bob Dylan é pura contradição. Já foi analisado, classificado, categorizado, crucificado, definido e dissecado. Já foi endeusado, inspecionado e rejeitado. Mas nunca completamente entendido.

Bob Dylan tornou as palavras mais importantes que a melodia. Deu cor às vogais e regulou o movimento das consoantes. Fundiu poesia e música como os beats já tinham tentado antes. E depois, tal qual um vagabundo, botou o pé na estrada. Foi fundo. Ganhou o mundo.

"Ei, ei Woody Guthrie, eu te escrevi uma canção..." Vinte anos tinha Bob Dylan quando escreveu esta canção. Era sobre um velho e engraçado mundo, que estava doente, faminto, exausto e descosturado. Parecia moribundo. Mas acabara de ser batizado.


Bob Dylan chegou a Nova York em janeiro de 1961. Fazia muito frio. O vento soprava e a neve rodopiava nas ruas de luzes avermelhadas. Ele não era conhecido e não conhecia ninguém. Não estava em busca de dinheiro. Nem de amor e nem de amém.

"Quantas estradas precisará um homem andar/ Antes que possam chama-lo de homem?", perguntava Dylan.

A resposta, passados mais de cinquenta anos, parece cada vez mais distante. Mas o vento ainda sopra. O velho lobo uiva. Ouçam Tempest. A voz do bardo ainda brada tanto quanto antes. Mas está mais grave. Parece sair das entranhas. Da mais distante das montanhas para nos alertar que os tempos mudaram e que as águas aumentaram. E o que era outrora delirante está cambaleante.

Enfim. As coisas mudam e o tempo passa. Pode não haver mais caminho de volta. Mas ainda há uma estrada. A roda gira. Temos mais dúvidas e menos verdades. Somos mais jovens do que os nossos pais o eram na nossa idade. E os nossos filhos mais que nós. Isso não tem preço. Tem nome e sobrenome: Bob Dylan. 

A história é circular e há tantas facetas em Bob Dylan que ele é esférico. O passado pode ser prelúdio ou poslúdio. As estradas foram muitas. A que ele está agora parece ser de mais busca e mais descoberta e mais criatividade com o avançar da idade.

Hoje, aos 74 anos, Dylan ainda ajuda a definir estes tempos cambiantes e intolerantes. E isso é muito mais que importante: é determinante e reconfortante.

sábado, 13 de fevereiro de 2016


2003:  um ano que não me sai da memória


Por quê?

Porque 2003 foi o ano da invasão dos Estados Unidos ao Iraque. Porque 2003 foi o ano em que Lula tomou posse como presidente do Brasil. E porque o ano de 2003 guarda um dia mais que importante na minha história.

A cidade de Pelotas era governada por Fernando Marroni. Eu trabalhava numa Auto-Escola e apresentava o Américas na RádioCom. O Theatro Sete Abril estava em plena atividade e, nesse dia, 3 de maio, às 9 da noite, abria, pela segunda vez, suas portas ao uruguaio Daniel Viglietti. Eu, por detrás das cortinas, agradecia aos apoiadores e anunciava essa lenda viva da música latino-americana. Depois me beliscava e me perguntava:

- Será verdade?

Era.

Os arquivos estão aí pra comprovar.

Ajudem-me a escutar, e, se for o caso, a compartilhar, pois me é difícil acreditar que tenham resistido às ruas que andei, aos tsunamis que passei e às fronteiras que desalambrei. Custa-me acreditar que eles tenham sobrevivido aos lugares onde eu descambei.

Gratíssimo
Enilton Grill
1º de maio de 2014


Daniel Viglietti
ao vivo
Theatro Sete de Abril
Pelotas 
3 de maio de 2003


segunda-feira, 19 de outubro de 2015


Vinicius não perdeu nada
(a vida é que perdeu a graça)


Por Enilton Grill


Era 1980. Vinicius já quase não saía. Só recebia os amigos mais íntimos. Havia, na época, uma jornalista que insistia com o poeta por uma entrevista. Vinicius resistia. Até que um dia cedeu. A primeira pergunta foi fulminante:

- Poeta, o senhor tem medo da morte?

Vinicius olhou nos olhos da moça e respondeu:

- Não, eu não tenho medo da morte, o que eu tenho é saudade da vida.

E essa foi a última entrevista que Vinicius concedeu. Para o poeta já não tinha mais sentido a vida. Ele já estava de despedida. Ele já tinha vivido tudo, a vida não lhe daria mais nada. Só lembrando: a década de 80 ficou conhecida como a década perdida. De lá pra cá,  tudo - ou quase tudo - é efêmero, é passageiro. Vinicius não perdeu nada. A vida é que perdeu a graça.

sábado, 12 de setembro de 2015



Tributo a um Rei Esquecido


Adaptado e ilustrado
por Enilton Grill


Do livro
Eu não sou cachorro, não
De Paulo César de Araújo


"Eu quis gritar seu nome e não pude (...)
O que foi que fizeram com ele?
Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem
Foi um rei"
Benito di Paula,
'Tributo a um rei esquecido', de 1974



Benito di Paula fazia uma homenagem a Geraldo Vandré, autor de 'Pra não Dizer Que não Falei das Flores' – canção-símbolo da luta contra a ditadura, censurada em 1968. Naquele mesmo ano, Vandré se exila no Chile. Voltou preso, em 1973. Um ano depois, a lembrança cantada por Benito di Paula também acabou proibida.



Lançada em 1974, ”Tributo a um rei esquecido” é uma homenagem de Benito di Paula a um dos artistas brasileiros mais visados pela ditadura militar: o cantor e compositor Geraldo Vandré.

O verso "Eu quis gritar seu nome / não pude” é uma referência ao fato de a simples pronúncia do nome Geraldo Vandré ser objeto de censura na época.

A sua voz e a sua imagem estavam praticamente banidas no Brasil. Mas o samba de Benito, além de evocar a memória do artista proscrito, amplificava uma pergunta que muitos brasileiros faziam (e ainda fazem) em relação a Vandré: “O que foi que fizeram com ele?”

Ao longo dos anos a resposta para esta pergunta tem corrido de um extremo ao outro: para a maioria Vandré foi um idealista que não transigia com sua arte e foi torturado até sofrer um processo de lavagem cerebral; para alguns poucos, ele mudou porque mudou. Simples assim.


Seja como for, a origem desta polêmica tem local, data e nome determinados: Rio de Janeiro, Maracanãzinho, 29 de Setembro de 1968, “Pra não dizer que não falei de flores”. Ali, em pleno regime militar, Geraldo Vandré apresentou ao público e ao júri do III Festival Internacional da Canção a mais contundente crítica jamais feita ao Exército brasileiro numa letra de música popular e num momento em que as Forças Armadas controlavam os poderes da República.

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão...

A repercussão da música foi imediata. De sua base no Forte Coimbra, no pantanal mato-grossense, o general Aspirante Basto enviou uma “Carta a Geraldo Vandré”, publicada no Última Hora, e na qual ele questionava o compositor:

“O que entende você de pátria, para dizer que nos quartéis se vive sem razão? Que mais você fez nesta vida, sem ser em troca de lucro?”, indagando ainda que “será uma vida sem razão a dos homens que neste momento, como eu, em terras longínquas ensinam a cor da bandeira brasileira?”

Mais adiante ele aconselhava o artista: “Cante o que quiser, mas não coloque nada de pátria no meio. Você não sabe o que é isso. A sua pátria deve ser um copo de cerveja.” E num tom cada vez mais exaltado, o general vaticinava: “Você passará, Vandré. O povo esquece depressa. Sua música causou sensação, mas logo será esquecida.”


Aspirante Basto pode ter sido um bom militar, mas foi com certeza um péssimo vidente. Lançada em meio aos protestos estudantis de 1968, “Pra não dizer que nao falei de flores” (ou “Caminhando”, como ficou mais conhecida) se tornou uma espécie de Marselhesa brasileira, inflamando greves, passeatas e manifestações até os dias de hoje.

Na época a composição não venceu o festival e foi proibida pela Censura Federal sob o argumento de veicular uma mensagem “subversiva e atentatória ao regime democrático”.

Mas os militares não estavam satisfeitos; queriam também a "cabeça" de Geraldo Vandré. E logo após a decretação do AI-5, quando já não havia mais regime democrático, foram bater à porta de um hotel em Anápolis, Goiás, onde o cantor se hospedara em meio a uma turnê. Providencialmente, entretanto, Vandré já estava a caminho do Rio, seguindo depois para a fazenda de Dona Aracy Carvalho, viúva do escritor João Guimarães Rosa, no sertão mineiro.


Pouquíssimas pessoas sabiam do esconderijo, no qual Vandré permaneceria durante mais de um mês. O compositor Geraldo Azevedo, um dos poucos que tinham acesso a ele, recorda-se da tensão daqueles dias.

“Para ir lá eu tinha de me comportar como um militante de organização política clandestina; entrava num carro, mudava para outro, fazia tudo para despistar pessoas da repressão que pudessem estar me seguindo para, por meu intermédio, chegar a Vandré.”

Ali, na fazenda dos Guimarães Rosa, enquanto traçava a rota que seguiria no exílio, Vandré compôs em parceria com Geraldinho Azevedo “A canção da despedida”, premonição da sua própria trajetória a partir dali: ”Já vou embora / mas sei que vou voltar / amor, não chora / se eu volto é pra ficar...”


Alguns dias depois, o artista seguiu para o Rio Grande do Sul e em pleno domingo de Carnaval, 16 de fevereiro de 1969, atravessou a fronteira do Brasil com o Uruguai.

Os primeiros boatos diziam que ele estaria preso e incomunicável em alguma guarnição do Exército, de que fora torturado ou até mesmo executado pelo Esquadrão da Morte.

Em Junho de 1969 parte do mistério se desfez quando o jornal O Globo localizou Vandré em Santiago do Chile. “Estou bem vivo. Escrevendo e fazendo da saudade o que posso fazer”, disse ele à reportagem.

Sem visto para permanecer no país, no mês seguinte Vandré foi obrigado a deixar o Chile. Seguiu para a Argélia e depois a Europa: Alemanha, Áustria, Itália.


Muitas vezes em troca de pouso e comida Vandré percorreu povoados do interior da Grécia, Bulgária e Iugoslávia. Na França, fez uma pausa de 18 meses e ali, em novembro de 1970, gravou seu último LP: "Das Terras de Benvirá".

Em março do ano seguinte, foi detido pela Polícia francesa por porte de haxixe e obrigado a deixar o país.

Vandré consegue retornar a Santiago, mas o exílio já se tornara um pesadelo e o artista recorria cada vez mais ao uso de drogas. Num Chile àquela altura convulsionado, com toques de recolher, à beira do golpe militar, acentuaram-se as crises depressivas do compositor, num processo de desintegração psicológica que o fez submeter-se a tratamento psiquiátrico durante 45 dias.


Enquanto isto, no Brasil, sua família articulava negociações para que ele pudesse voltar. E assim, em Julho de 1973, dois meses antes de as tropas do general Pinochet tomarem o poder e cortar as mãos do cantor de protesto chileno Vitor Jara em pleno Estádio Nacional, Geraldo Vandré deixou Santiago, embarcando ao Rio de Janeiro.

Tão obscuro quanto sua saída foi o seu retorno ao país. O autor de “Pra não dizer que não falei de flores” fez uma única viagem de volta, mas desembarcou duas vezes no Brasil. Houve um desembarque real e um segundo desembarque, fictício.

O primeiro foi noticiado pelo Jornal do Brasil em sua edição de sexta-feira, 18 de Julho de 1973. “O cantor e compositor Geraldo Vandré foi preso, ontem, no aeroporto do Galeão, ao desembarcar de um avião. O artista foi levado para uma unidade militar, onde se encontra incomunicável.”


Seguiram-se 33 dias de absoluto silêncio. É quando é apresentado o desembarque fictício de Vandré em terras brasileiras. Na noite de 21 de agosto de 1973, a câmera do Jornal Nacional da TV Globo focaliza a escada de um Electra da Varig no aeroporto de Brasília.

O angulo vai se fechando e o rosto de Geraldo Vandré, barbado e com a expressão cansada, aparece na tela. Neste momento o locutor informa que “o cantor e compositor Geraldo Vandré acaba de voltar ao Brasil”. O artista desce a escada e caminha lentamente pela pista do aeroporto.

A seguir é mostrada a primeira fala de Vandré à televisão brasileira desde 1968. Cabisbaixo e com a voz trêmula, ele afirma que pretendia integrar suas composições “à realidade nova do Brasil, que espero encontrar em um clima de paz e tranqüilidade” e queixa-se de que sua música foi apropriada por grupos políticos contra a sua vontade:

“Vocês sabem, a arte às vezes é usada por um grupo determinado com interesses políticos e isso transcende a vontade do próprio autor. Eu, o que tenho a dizer é que, na verdade, nunca estive vinculado ou comprometido em toda a minha vida com qualquer grupo político.”

Por fim, ele declara que dali pra frente desejava “só fazer canções de amor e paz”.

É neste espaço de tempo entre a chegada de Vandré em 17 de julho de 1973 e esta "volta" apresentada pela TV Globo, 33 dias depois - que melhor se situa a pergunta formulada no samba de Benito di Paula: “O que foi que fizeram com ele?”


Sabe-se que após aquele primeiro período incomunicável numa unidade do I Exército, no Rio de Janeiro, o compositor também esteve preso numa carceragem da Polícia Federal em Brasília.

E foi provavelmente entre uma cela e outra que a polícia política conseguiu arranjar a retratação ou confissão que Vandré apresentou ao público através do Jornal Nacional.

Geraldo Vandré - O que aconteceu de fato, com ele?

O fato é que, quando num daqueles dias de 1974, Benito di Paula avistou Geraldo Vandré “dizendo um poema para um poste”, o autor de “Disparada” já era uma sombra de si mesmo. Estava com 38 anos, mais gordo e grisalho, vagando a esmo sozinho pelas ruas de São Paulo. E dizia não ver televisão; não ouvir rádio; não ler jornal; não ter emprego; e não pagar imposto.

E recusava-se a gravar disco, fazer shows ou dar entrevistas: “Nada do que eu possa dizer, fazer ou pensar - dá no mesmo ser publicado ou não, porque não tem nenhum valor” , se auto-analisava sem nenhuma indulgência.

Aspectos que tornavam a pergunta do refrão do samba ”Tributo a um rei esquecido” cada vez mais pertinente e atual. “E eu continuo querendo saber: cadê ele? Já deram anistia pra ele? O que foi que fizeram com ele?” , reclama ainda hoje Benito di Paula.


Nos últimos anos alguns jornalistas tentaram fazer esta pergunta ao próprio Geraldo Vandré. E ele, na maioria das vezes, se esquiva da resposta. “A curiosidade sobre isso é uma paranoia, uma doença. Não me sinto responsável em elucidar isso”, respondeu a Brenda Fucuta do Jornal do Brasil.

A jornalista Maria do Rosário Caetano, de O Estado de S. Paulo, foi direta: “Você foi torturado?” A resposta de Vandré, também: “Nunca. E me nego a continuar falando sobre este assunto.”

E para um jovem repórter de O Globo que insistiu em perguntar-lhe se ele era uma vítima do regime militar, Vandré esbravejou com o dedo em riste e os olhos verdescinza arregalados: “Vítima é você! Vítima é você!”

Logo após o encerramento do III FIC, em Outubro de 1968, o então coronel Octávio Costa escreveu no Jornal do Brasil um artigo de grande repercussão intitulado “As flores do Vandré” , no qual ele defendia os militares - "não vivem sem razões os que asseguram à imensa maioria da nação o direito de continuar vivendo democraticamente" - , e cobrava punição para o compositor sob o argumento de que a Justiça não poderia se calar “diante do delito, do delito claramente configurado, à luz dos refletores, contra a lei vigente”.

Numa entrevista de mais de três horas concedida a Paulo César de Araújo, autor do livro "Eu não sou cachorro, não", o general responde sobre Geraldo Vandré ter sido ou não torturado:


“Eu acredito que ele deve ter sido preso e não descarto a possibilidade de ter recebido alguns tapas, uns empurrões contra a parede, 'vamos, faz uma música aí agora', coisas assim. A indignação dos militares contra ele foi tão grande que alguns algozes podem ter dado uns safanões. Já tortura em pau-de-arara, choque elétrico, não creio que tenha sofrido, muito menos lavagem cerebral, que é um negócio bastante requintado”.

Embora negue que tenha havido o uso das formas clássicas de tortura, Octávio Costa é a primeira autoridade militar do governo Médici que admite a possibilidade de que Vandré sofreu algum tipo de coerção física por parte de elementos do Exército.

Bem, de tudo isto, ressalte-se que aquela pergunta (ou paranoia, como diz Vandré), que se repete por três vezes no samba “Tributo a um rei esquecido” - "o que foi que fizeram com ele?" - , só pôde ser veiculada nas rádios do Brasil nos anos 70, porque Benito di Paula valeu-se mais uma vez da linguagem da fresta, driblando um comunicado expedido pela Polícia Federal que proibia a "transcrição ou divulgação de qualquer notícia, comentário ou referência" a respeito do cantor e compositor Geraldo Vandré.”

Benito di Paula chamou-o então de “rei”, valendo-se de imagens presentes na canção “Disparada”, em que Vandré diz “na boiada já fui boi / boiadeiro já fui rei”. E esta era realmente a única forma possível de se cantar brasileiros mortos, presos ou banidos pelo regime de 1964.


Tributo a um rei esquecido
Benito di Paula
1974