segunda-feira, 20 de janeiro de 2025


 O GRANDE ENCONTRO 

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O piano tocou uma lenta melodia fúnebre, 
E a cidade foi iluminada por uma fria lua de Natal,
Os pais choraram e os mineiros gemeram, 
"Veja o que a sua ganância por dinheiro fez".

Woody Guthrie (1961)

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Ei, ei Woody Guthrie, eu te escrevi uma canção
Sobre um estranho mundo que está surgindo 
Parece doente e faminto, cansado e debilitado
Parece que está morrendo e recém nasceu. 

Bob Dylan (1961) 

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Não sei dizer quando me ocorreu a ideia de escrever minhas próprias canções. Eu não tinha produzido nada para definir o modo como me sentia a respeito do mundo que se comparasse ou fosse a metade das letras de música folk que eu vinha cantando. Acho que isso acontece em etapas. Você não acorda um dia e simplesmente decide que precisa escrever canções, especialmente se você é um cantor que tem muitas delas e está aprendendo mais todos os dias. É preciso que apareçam oportunidades para que você converta algo – algo que existe em algo que não existe. Esse pode ser o começo. Às vezes você quer apenas fazer as coisas do seu jeito, quer ver por si mesmo o que está por trás da cortina de névoa. Não é como se você visse canções se aproximando e as convidasse para entrar. Não é fácil assim. Você quer escrever canções maiores que a vida. Quer dizer algo sobre coisas estranhas que aconteceram com você, coisas estranhas que viu. Você tem que saber e compreender algo, e depois passar para o vernáculo. A precisão arrepiante que os antigos usavam para chegar às suas canções não é pouca coisa. Às vezes você pode escutar uma canção e sua mente dar uma salto à frente. Esse padrão pode se repetir na maneira como você anda pensando nas coisas. Jamais pensei nas canções como "boas" ou "ruins", apenas tipos diferentes de boas. 

Algumas delas podem se referir a casos verídicos. Eu tinha escutado por aí uma canção chamada "I Dreamed I Saw Joe Hill". 

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Joe Hill | Joan Baez | Woodstock (1969)  

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Eu sabia que Joe Hill era um sujeito real e importante. Não sabia quem ele era, por isso perguntei a Izzy no Folklore Center. Izzy sacou alguns panfletos sobre ele da sala dos fundos e me deu para ler. O que eu li poderia ter saído de um romance de mistério. Joe Hill era um imgrante sueco que lutou na guerra mexicana. Tinha levado uma vida carente e pobre, era um líder sindical do Oeste por volta de 1910, uma figura messiânica que queria abolir o sistema salarial do capitalismo – um mecãnico, músico e poeta. Chamavam-no de Robert Burns dos trabalhadores. 

Joe escreveu a canção "Pie in the Sky" e foi precursor de Woody Guthrie. Era tudo o que eu precisava saber. Ele foi condenado com base em provas circunstanciais pelo crime de assassinato e executado por um pelotão de fuzilamento em Utah. A história de sua vida é pesada e profunda. Ele era um organizador dos Wooblies, a seção combatente da classe trabalhadora americana. Hill é julgado pelo assassinato do dono de um armazém e do filho deste em um assalto mixuruca à mão armada, e sua única defesa é dizer: "Provem!".  Antes de morrer, o filho do comerciante abre fogo contra alguém, mas não há prova de que a bala tenha acertado em qualquer coisa. Contudo, Joe tinha um ferimento de bala, e isso parece bastante incriminador. Cinco pessoas sofrem ferimento de bala na mesma noite, são tratadas no mesmo hospital, liberadas, e todas elas desaparecem. Joe diz que estava em outro local na hora do crime, mas não diz onde, nem com quem. Não fornece quaisquer nomes, nem mesmo para salvar a própria pele. A crença geral é de que havia uma mulher envolvida, uma mulher que Joe não quis envergonhar. A coisa fica mais esquisita e complicada. Outro cara, um bom amigo de Joe, desaparece no dia seguinte. 

Está tudo bem enrolado. Joe é amado por todos os trabalhadores da nação – mineiros e açougueiros, pintores de placas e ferreiros, estucadores, encanadores, metalúrgicos; quem quer que fossem, ele os uniu e lutou pelos direitos de todos, arriscou sua vida para tornar as coisas melhores para todos da classe baixa, os desfavorecidos –, os trabalhadores mais mal-remunerados e maltratados do país. Ao ler a história dele, seu caráter se revela, e você percebe que ele não é o tipo que roubaria e mataria um funcionário de armazém por acaso. Isso simplesmente não poderia acontecer com ele. É impossível que tivesse feito algo assim por un trocados. Tudo em sua vida remete a honra e probidade. Era um andarilho e um guardião, o tempo todo patrulhando. Para os políticos e industrialistas que o odiavam, entretanto, ele era um criminoso empedernido e um inimigo da sociedade. Eles esperaram durante anos por uma oportunidade para se livrar dele. Joe foi declarado culpado antes mesmo de o julgamento começar. 

A história toda é espantosa. Em 1915, houve passeatas e comícios de massa a favor dele que encheram as ruas em todas as grandes cidades americanas – Cleveland, Indiapolis, St. Louis, Brooklin, Detroit, muitas mais –, onde quer que houvesse trabalhadores e sindicatos. Até o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, tentou fazer com que as autoridades de Utah revissem o caso, mas o governador de Utah não deu a mínima para o presidente. Em seus últimos momentos, Joe diz: "Espalhem minhas cinzas em qualquer lugar, menos Utah". 

A canção "Joe Hill" foi escrita um tempo depois disso. Quanto a canções de protesto, eu tinha ouvido umas poucas. "Bourgeois Blues", a canção de Leadbelly; "jesus Christ" e "Ludlow Massacre", de Woody; "Strange Fruit", a canção de Billie Holliday, algumas outras – e todas eram melhores que aquela. Canções de protesto são difíceis de escrever sem que o resultado seja maçante e unidimensional. Você tem que mostrar às pessoas um lado delas mesmas que elas não sabem que existe. A canção "Joe Hill" nem chega perto, mas, se já houve alguém que poderia inspirar uma canção, foi ele. Joe tinha chamas no olhar. 

Imaginei que, se eu tivesse escrito a canção, teria imortalizado Joe de maneira diferente – mais como Casey Jones ou Jesse James. Era o que devia ter sido feito. Pensei em dois caminhos. Um era intitular a canção "Scatter My Ashes Anyplace but Utah" e fazer dessa linha o refrão. O outro era fazer como a canção "Long Black Veil", na qual um homem fala do túmulo... uma canção do além. É uma balada na qual um homem abre mão de sua vida para não desgraçar uma certa mulher e tem que pagar pelo crime de outro por causa do que ele não pode dizer. Quanto mais pensava sobre isso, mais "Long Black Veil" parecia uma canção que poderia ter sido escrita pelo próprio Joe Hill, a sua última.

Não compus uma canção para Joe Hill. Pensei em como faria, mas não fiz. A primeira canção de alguma importância substancial que acabei escrevendo foi para Woody Guthrie. 

Bob Dylan | Crônicas: Volume Um - p. 62 a 66.

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Estou aqui a mil milhas de casa
Pegando uma estrada em que outros homens sucumbiram
Vejo teu mundo de pessoas e coisas
Vejo pobres e camponeses, príncipes e reis

Ei, ei, Woody Guthrie, eu te escrevi uma canção
Sobre um estranho mundo que está surgindo
Parece doente e faminto, cansado e debilitado
Parece que está morrendo e recém nasceu

Ei, Woody Guthrie, mas eu sei que você sabe
Todas as coisas que estou dizendo e muito mais 
Eu te canto esta canção, mas jamais será o bastante
Pois não há muitos homens que fizeram o que você fez

Esta vai para Cisco e Sonny e também para Leadbelly
E toda gente boa que viajou contigo
Esta vai para o coração e as mãos dos homens
Que chegaram com a poeira e partiram com o vento

Parto amanhã, mas poderia partir agora
Em algum lugar da estrada, algum dia
A derradeira coisa que vou querer fazer
É contar que também encarei uma dura travessia 

Song to Woody | Bob Dylan (1961) 

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Nota: Dylan usou a melodia de "1913 Massacre" 
quando escreveu "Song to Woody".

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Faça uma viagem comigo em 1913
Para Calumet, Michigan, no país do cobre 
Eu vou te levara para um lugar chamado Italian Hall 
Onde os mineiros estão tendo um grande baile de Natal

Eu te levarei por uma porta e subirei uma escada alta
Cantoria e dança serão ouvidas em todos os lugares 
Eu deixarei você apertar a mão das pessoas que você vir
E assistir as crianças dançarem ao redor da grande árvore de Natal.

Você pergunta sobre trabalho e pergunta sobre pagamento,
Eles dirão que ganham menos de um dólar por dia,
Trabalhando nas minas de cobre, arriscando suas vidas,
Então é divertido passar o Natal com filhos e esposas.

Há conversas, risos e canções no ar,
E o espírito do Natal está em todo lugar,
Antes que você perceba, você é amigo de todos nós,
E você está dançando e dançando no salão.

Bem, uma garotinha senta-se perto das luzes da árvore de Natal,
Para tocar piano, então você tem que ficar quieto 
Para ouvir toda essa diversão, você não perceberia
Que os capangas do chefe de polícia estão circulando lá fora.

Os capangas do chefe enfiaram suas cabeças na porta,
Um deles gritou e ele berrou, "há um incêndio",
Uma senhora gritou, "não existe tal coisa.
Continue com sua festa, não existe tal coisa". 

Algumas pessoas correram e eram apenas algumas,
"São apenas os bandidos e os fura-greves enganando vocês".
Um homem agarrou sua filha e a carregou para baixo,
Mas os bandidos seguraram a porta e ele não conseguiu sair.

E então outros seguiram, cem ou mais, 
Mas quase todos permaneceram no chão, 
Os bandidos armados riram de sua piada assassina,
Enquanto as crianças foram sufocadas nas escadas perto da porta.

Nunca vi nada mais terrível
Carregamos, então, nossos filhos para perto da árvore
Os fura-greve lá fora ainda riam de sua "farra"
E foram setenta e três crianças que morreram lá  

O piano tocou uma lenta melodia fúnebre, 
E a cidade foi iluminada por uma fria lua de Natal,
Os pais choraram e os mineiros gemeram,
"Veja o que a sua ganância por dinheiro fez". 

1913 Massacre | Woody Guthrie (1961) 

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#Américas 
#Repecho