quinta-feira, 2 de agosto de 2012


'ENTRA, ENCONTRASTE A TUA CASA'


_ POR JOSÉ SARAMAGO



O cão é o melhor amigo do homem, Ensinaram-me isso nos tempos da velha instrução primária, com aulas de manhã e folga às quintas. O professor era um homem alto e calvo, grave na sua posição de diretor, mas amigo dos alunos e nada exagerado na disciplina. Punha muito empenho em questões de formação moral, e o cão era um dos seus grandes temas.

Não me serviram de muito as lições do meu professor. Os cães que fui conhecendo ao longo da minha existência sempre fizeram gala de uma obstinada animadversão em relação a mim. Ou porque cheiravam o medo, ou porque os irritava a falta de jeito com que tentava dissimulá-lo, sempre houve entre os cães e eu, se não a guerra aberta de que só eu saía a perder, pelo menos uma relação de mútua e desconfiada reserva.

Recordo com despeito, por exemplo, aquele chucho castanho que vinha a correr pela ruela estreita e sem proteção, arrastando atrás de si uma trela partida, e que, sem aviso, ou talvez por um qualquer gesto brusco que eu fiz, ferrou-me os dentes quando passou por mim e, depois de me arranhar as canelas, deixando-me a escorrer sangue, seguiu o seu caminho, abanando o rabo de pura alegria.

Alguns anos mais tarde, dou de caras com um cão. Conhecia-o de vista e da má fama que tinha, um gigante de raça indefinida e caráter avesso que não tolerava intrusos no seu território e se divertia quebrando a espinha em menos tempo do que leva a dizê-lo, qualquer bicho que lhe aparecesse pela frente.

Tal como o chucho castanho, também ele não tinha estado nas aulas do meu professor. Ora bem, quis o acaso, ou a providência, que eu tivesse comigo uma cana grossa e comprida para me apoiar nas subidas e descidas da caminhada.

Escapei. Depois de me observar longamente e com minúcia, como se me tomasse as medidas, pareceu-lhe que eu não era digno da sua cólera. Dei meia volta e desapareceu num trompicar curto e desdenhoso, sem olhar para trás.

Fui-me afastando devagar, às arrecuas, ainda a tremer, até que cheguei a casa e contei o sucedido a uma tia minha que não acreditou na história. Era tal a reputação do monstro que eu dizer que o tinha vencido com uma simples cana deve ter-lhe parecido a mais descarada das mentiras...

A partir de então, e crendo que assim seria para sempre, perdi a confiança na apregoada bondade dos cães, a tal de que o meu velho professor tinha sido um tão convicto propagandista.

Provavelmente nunca pensou que entre os cães e os homens não há grandes diferenças: uns são bons, outros maus, outros nem uma coisa nem outra. 

Perguntei-me algumas vezes que lição poderia ele dar-nos a respeito de certos canídeos que andam por aí, bem tratados, com pelo brilhante, pata forte e dente afiado, dotados de um profundo conhecimento da anatomia humana e dos modos mais eficazes de danificá-la. 

Passados muitos muitos anos, noutra terra, debaixo de outro céu, um cão apareceu à minha porta. Tinha fome e sede. Demos-lhe água e comida, e deixámo-lo. Voltou poucas horas depois e olhou para nós. Então dissemos-lhe: “Entra, encontraste a tua casa”.

Não foi o único. Outros dois, cada um por seu lado, vieram perguntar se a casa também estava aberta para eles. Dissemos-lhes que sim. Chamam-se, por ordem, Pepe, Greta e Camões. São os nossos cães, e está tudo dito.

Não, não está tudo dito. Este homem que não se envergonha de confessar que tinha medo dos cães dedicou parte do seu trabalho de escritor a criar, a inventar, a modelar figuras de cão, como se, já que temia os outros, estivesse na sua mão corrigir os erros da natureza.

Assim pôs no mundo da literatura o cão Constante de Levantado do chão, o cão do fio de lã azul da Jangada de Pedra, o cão das lágrimas do Ensaio sobre a Cegueira. Esse sobre o qual eu disse que, se o que escrevi caísse no esquecimento, ao menos que de mim restasse a memória de ter dado vida a um cão em que palpitava o coração do melhor dos humanos...


OS DITADORES (COMO DIRIA RAULZITO)
FAIXA 07
VIAGENS E VERSOS
ZÉ GERALDO
1990