quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015


Relatos selvagens

A crueza alegórica do cotidiano voraz

Em sessões às 17h e 21h50min, produção argentina “Relatos Selvagens” está em exibição na sala 5 do Cineflix no Shopping

Por Carlos Cogoy

Após jejum de filmes razoáveis, uma bela obra em exibição no Shopping Pelotas. Em duas horas, seis relatos que espiam o abismo. Cada episódio uma sentença. Reunidos, chegaram com fôlego à indicação para o Oscar de filme estrangeiro. “Relatos selvagens” não levou a estatueta. O que pouco importa, considerando-se que “Selma” – aborda a questão negra nos EUA -, também não venceu como melhor filme. Enquanto o Oscar prossegue “selvagem”, contundentes e lúcidos relatos aguçam a sensibilidade e inteligência. Com direção do talentoso Damián Szifrón, “Relatos selvagens” também remete a inescapável comparação com a produção cinematográfica no País que “Lava Jato”. Nem tudo é ruim, mas tem sido frequentes as idiotices cujos elencos, para atrair bilheteria, escalam celebridades das novelas de tevê.

SEIS episódios à procura de uma razão. No filme argentino, surpresas perante tramas inusitadas, apreensão com desfechos imprevistos, riso diante da ficção que espelha o cotidiano. Em cada história, atores transitam sobre o abismo que separa razão e loucura. Na abertura, voo emblemático. No avião, poucos minutos são suficientes para inquietar. E a “turbulência” é tão intensa que sacode, além dos passageiros, também os espectadores na sala de cinema. Afinal, o que se insinua como o trivial início de viagem corriqueira, gradativamente vai se desdobrando num percurso rumo a destino tragicômico. Na bagagem, a bomba não é artefato explosivo, mas também possui elevada capacidade de destruição. Trata-se de viagem aos traumas do passado. E alegoricamente um psiquiatra está na aeronave. O pouso não será acidental.

COLESTEROL da porção de batatas fritas, como causa para a morte de mafioso. Num café à beira de rodovia, o cliente é atendido por garçonete. Ela o identifica e recorda momento doloroso. A cozinheira do lugar ouve o desabafo da colega. Num dos momentos mais hilariantes, surge a dúvida se o “veneno para rato”, com validade vencida, torna-se mais eficaz ou menos nocivo. Ex-presidiária, a cozinheira afirma que “na prisão era mais livre do que essa merda toda”. Com a chegada de adolescente, filho do cliente, Fanta sobre a mesa.

PNEU furado pode ser fatal. Numa rodovia, Audi tripulado por “bon vivant”. À frente, arrastando-se sobrecarregado, carro popular bem rodado. A estrada é o abismo entre dois mundos e realidades sociais antagônicas. O episódio é caricatura que transcende o vulgar litígio no trânsito. Trata-se de relato sobre o cotidiano voraz, sem inocência ou ingenuidade, tanto do endinheirado quanto do espoliado. A crueza acelera e o fim da viagem tem conotação que ridiculariza as pretensas diferenças. Todos rodam no mesmo chão.

SISTEMA explora. Numa teia burocrática com filas, guichês e funcionários treinados na “lógica binária” - sim e não -, armadilhas estão à espreita. As “minas” explodem no bolso do contribuinte. E podem estar armadas em banalidades como o simples estacionamento do veículo. O meio-fio não estava “marcado”, mas o carro foi guinchado. A vítima é o engenheiro interpretado pelo ator Ricardo Darín. Especialista em explosivos, ele desafia o sistema.

FILME tem ainda dois episódios excelentes. No penúltimo, jovem de classe média alta atropela e mata gestante. O que sucede, em interpretações magistrais, é uma ciranda de venalidades, corrupção e propina. Na festa de casamento, relato que encerra a obra, ciúme gera comemoração surrealista. Aos convidados, ódio, rancor, ironia, cobiça, medo e ternura.