quarta-feira, 1 de janeiro de 2014


Don Atahualpa


por Alfredo Zitarrosa


fevereiro 4, 1966


tradução livre: Enilton Grill


Tinha que vê-lo subir ao palco, sentar-se ali, diante de uma platéia grandiosa, atravessar a guitarra zurda e acomodar suas duas mãos cuarteadas, torcidas como as mãos de um reumático, para preludiar uma milonga em ré menor.

Na noite de estreia, um domingo, cantou as 'coplas del payador perseguido'; uma versão nova, de duração reduzida, com algumas coplas recém feitas. Sobre a praça baixou um silêncio profundo, que só se rompeu com o aplauso estrondoso do final.

O Festival de Cosquín é um evento gigante com valores consagrados que se apresentam sob contrato prévio, mas que se completa com outros inumeráveis intérpretes, que cantam ou dançam por amor à arte, e pagam os próprios gastos ou não, segundo suas próprias vontades.

Dura oito dias; e o espetáculo de cada jornada, mais de seis horas. Precisamente por causa dessa enorme quantidade de intérpretes, ninguém terá oportunidade de cantar mais de dois ou três temas.

Tirando os 'grandes' (Yupanqui, Los Fronterizos, Guaraní, los Ábalos), mais ou menos autênticos ou populares, o resto do programa se cumpre à risca, no palco, e se prolonga mais adiante, em peñas y fogones por todo o local, durante o dia e durante a noite.

Dezenas de delegações, intérpretes, autores, representantes, 'espiões' das gravadoras, se misturam nos hotéis e pensões, à beira do rio Cosquín, em barracas, em carros ou caminhões acondicionados para servir de alojamento provisório, transformando aquilo em um amontoado de seres e coisas, de máquinas e animais.

No meio desse caos, que se organiza e passa pelos caça-níqueis da Plaza Próspero Molina, don Atahualpa Yupanqui, homem de silêncios e melancolias, versado em buscar solidão, come e dorme como qualquer turista, longe do ruído, no hotel mais distante.

Quando aparece o cronista da Radio El Mundo, gravador na mão, don Atahualpa se levanta e muda de lugar ainda que tenha que abandonar a seus amigos. E então o radialista se dirige a qualquer outro cantor.

Mas depois da sesta, talvez se possa falar com ele à beira do rio. Sim, a entrevista não vai ser fácil. Mas hão de cair-lhe bem um olhar e um aperto de mão sem espalhafatos. Quem sabe então, vá em busca de seu alforje de lã, onde carrega aquecedor, cuia e bomba e possamos matear um pouco.

As perguntas políticas terão uma resposta clara e simples, ainda que depois diga que ‘está cansado de que venha qualquer um e se aproveite de sua franqueza’. Salvo raras exceções, esqueceram-se dele quando caiu preso, ou não souberam procurá-lo com caneta e papel, quando teve que exilar-se.

Fala e escreve em francês, é jornalista, foi boxeador na sua juventude e na sua casa em Cerro Colorado tem tudo que precisa: ‘piano, livros, cavalo, paisagem e silêncio’. Assim diz. A casa se chama ‘Agua escondida’, o mesmo nome de uma de suas zambas mais profundas.

—¿O que vem a ser o folclore, Don Atahualpa?
—Cantar folclore consiste em aprofundar a paisagem. Fazer folclore. Existe um jeito de ser; um jeito italiano, um jeito russo, um jeito argentino, venezuelano, ianque. Alguns dizem ‘oui’, outros ‘da’, outros ‘ya’: nós dizemos ‘Aja’... Devemos aprofundar nosso ‘Aja’.

—¿Qual foi sua primeira guitarra?
—Uma guitarra espanhola branca.

—¿Qual foi a que perdeu em Buenos Aires, segundo suas coplas del Payador?
—Uma Santos Hernández. Tive que empenhá-la.

—¿Quantas guitarras tem agora?
—Seis. Quatro argentinas, Núñez todas. Duas espanholas: uma González, que comprei em Madri, na Rua Carretas, e outra granadina, feita por um estupendo luthier, Manuel de la Chica.

—¿Quantas canções compôs; qual foi a primeira e qual a última?
—Mais de quinhentas: duzentas e pico estão gravadas. A primeira foi ‘Camino del Indio’ e a última acabo de entregá-la à Editorial Lagos; se chama ‘Vidala del Cañaveral’.

—Você é jornalista, Don Atahualpa. ¿Para quais jornais escreve e sobre quê?
—Escrevo para um jornal de Calí y para um jornal francês. Temas de sociologia.

—¿Já leu Kafka?
—Sim. É interessante, agudo, insolente para o senso comum, profundo. Mas parte do existencialismo e me faz pensar nesses filósofos modernos que buscam desorientar-se em grupo.

—¿Qual poeta de língua espanhola prefere?
—Antonio Machado em primeiro lugar. Góngora e Lorca.

—¿Sobre Vallejo e sobre Rilke...?
—Nem falar, nem falar de Vallejo. É uma coisa à parte. Sobre Rilke tenho um estudo que foi publicado em Buenos Aires em 1956. Li toda sua obra e lembro em particular a ‘Balada del portaestandarte Cristóbal Rilke’, ‘Los Cuadernos de Malte’ e ‘Las manos del buen Dios’.

—¿Por que não voltou a Montevidéu nos últimos anos?
—Porque lá vivem muitos argentinos e me deu vergonha. Saíram daqui e se foram pra lá porque aqui lhes pagavam muito mal. Parece que venceram. Francamente, me daria vergonha aparecer por lá eu também.

—¿Quais eram seus passatempos de jovem?
—Os esportes, a filosofia e a música. Há 35 anos eu era um jovem. Falava com veneração de Bach e de Beethoven. Gostava de medicina. Acabei me tornando doutor em zambas.

—¿Em que país gostaria de viver, fora da Argentina?
—Na Hungria. É uma bela terra. Em 1955 não havia tornillos nem vidros. Ali estive vivendo com os ciganos, com a tribo de Aladar Racs. Eu vi velar al violín. Conservam instrumentos de boa marca. Os grandes ciganos podem levar um, quando estão preparados para sair mundo afora. Rubén Barga, José Czigeri, levaram violinos de Tissa-Videck. O violino sempre volta, ainda que o artista envelheça, ainda que o venda. Diz-se que a cada 30 anos haverá um cigano que levará consigo um violino.

—¿Qual sua opinião sobre o festival de Cosquín?
—É uma mostra interessante. Mas não a percebo elevadamente artística. O público não tem porque escutar a qualquer medíocre, isso convém aos hoteleiros. O público tem direito de receber coisa melhor.

—¿Qual sua opinião sobre o Jazz?
—O jazz me interessa, mas não o quero em minha guitarra.

—¿Acredita que os índios peruanos têm consciência revolucionária?
—Onde o povo sofre existe um fermento revolucionário. Nem você nem eu sabemos o que acontece no Peru. É possível que nem todos tenham essa consciência. Mas também tem que pensar em quem são os que capitalizam a (consciência) que possa haver.

—¿Acredita que uma revolução socialista, no futuro, possa ser encabeçada por um líder vindo da burguesia, como Fidel?
—Devia estar muito corrompida a ditadura de Batista, quando um jovem como Fidel conseguiu fazer a revolução com um punhado de companheiros.

—¿Tem que ser marxista um líder revolucionário?
—Tem que pensar como ser humano. Eu conheci infinidade de jovens ao longo da minha vida e acredito fundamentalmente na juventude. Por outro lado não encontrei gente mais ignorante em relação ao folclore que os marxistas. Eles escutam a você como fazendo uma concessão. Falta conteúdo, na maioria dos casos.

—¿Conhece a situação política de nosso país?
—Sim. Ainda que lhe diga que não acredito nos políticos. A política é para aqueles que sabem se aproveitar dela. No seu país, por exemplo, nessa terra tão pequeninha, ¿por que não se juntam todos para fazer uma Pátria Grande? Seria tão simples.