domingo, 8 de janeiro de 2012



 RECANTO ESCURO


POR CAETANO VELOSO


Quando voltei do exílio londrino, me apresentava usando batom vermelho. Meu cabelo descia até os ombros e era repartido no meio. Um retrato vivo de Gal, pensado como uma homenagem a ela ter encarnado os tropicalistas expatriados durante aqueles anos.

Rimbaud: “J´est un autre”“eu é um outro”.

Anônimo favelado carioca: “é nós”.



O disco é meu trabalho composicional de agora. Quis fazê-lo com o som da voz dela. Não se tratava de meramente relembrar o passado de Gal, mas de produzir com ela uma peça que fosse forte como expressão atual e, assim, estivesse à altura do nosso histórico. Sonhei com isso por um bom tempo. É que tudo o que conto em “Verdade Tropical” (do reitor Edgard Santos à axé music, passando pela Banda Tropicalista de Rogério Duprat) ficaria sem substância se a voz de Gal não soasse agora em contexto contundente. Finalmente comecei a compor e a imaginar arranjos e sonoridades.

Chamei Moreno, que é afilhado da Gal e um mago no comando de um estúdio, e ele logo me disse que Kassin era o indicado para tratar os temas que eu ia lhe mostrando. Por isso Kassin tem o maior número de faixas sob sua responsabilidade de programador/arranjador. Tudo fluiu muito rápido. Em “Recanto escuro” ele criou “ilusões auditivas” que têm o mesmo efeito que as levadas equívocas do rap mais inventivo. Depois, encontrando Luís Felipe de Lima no estúdio, extraiu dele essas intervenções de violão de sete cordas que, ao mesmo tempo, rasgam nosso coração e o consolam.

“Recanto escuro” é a primeira faixa do disco. Gal botou uma voz só para Kassin trabalhar. E nós ficamos com essa voz até hoje. E entrou no disco, era uma voz que o Moreno gravou com ela aqui assim, nesse estúdio. Ainda assim sem um microfone bom, especial que usamos para o resto do disco. E ficou tão sincero. Talvez ela pudesse fazer uma coisa, do ponto de vista do controle, mais burilado. Mas a emoção, o jeito que ela agarrou a canção na primeira interpretação a gente sentia que era insuperável, bonito demais e a gente não quis se desfazer dela. E ela ficou para sempre.

As letras desse disco são ao mesmo tempo muito diretas e um tanto enigmáticas. Não pude evitar. Atribuo ao fato de eu ter pensado nos sons eletrônicos envolvendo a voz de Gal. “Recanto escuro”, que é uma biografia cifrada da própria Gal (mas tem elementos de minha própria biografia), foi composta primeiro sem palavras. Eu queria que estas confirmassem o clima que poderíamos obter com as programações.

Foi tudo um sonho meu. Mas ouvir o que a turma que reuni aprontou para Gal, sobretudo tendo dois dos meus filhos envolvidos, me faz sentir que me aproximei mais do que entendi sobre nosso grupo núcleo, Gil, Bethânia, Gal e eu, desde que começamos à beira da Bahia de Todos os Santos.

Caetano Veloso
Novembro 2011


RECANTO ESCURO

Eu venho de um recanto escuro
O sol, luz perpendicular
Do outro lado azul do muro
Não vou saltar

Eu chego às portas da cidade
E nada procuro fazer
Espero, nem feliz nem gaia
Acontecer

Não salto mas sou carregada
Por asas que a gente não tem
A luz não me fulmina os olhos
Nem vejo bem

Em breve só saio de noite
A lua não me rasga o peito
Cool jazz me faz feliz e só
Não tenho jeito

O álcool só me faz chorar
Convidam-me a mudar o mundo
É fácil: nem tem que pensar
Nem ver o fundo

O chão da prisão militar
Meu coração um fogareiro
Foi só fazer pose e cantar
Presa ao dinheiro

Mas é sempre o recanto escuro
Só Deus sabe o duro que eu dei
Mulher, aos prazeres, futuro
Eu me guardei

Coisas sagradas permanecem
Nem o Demo as pode abalar
Espírito é o que enfim resulta
De corpo, alma, feitos: cantar.
                                Caetano Veloso, 2011

RECANTO ESCURO
CAETANO VELOSO
GAL COSTA
RECANTO
2011