quinta-feira, 4 de agosto de 2011

 

NI OLVIDO... NI PERDÓN!


* Por Enilton Grill

artigo escrito em dezembro de 2006


Em outubro de 98, o destino pregou uma peça e derrubou um dos homens de ferro dos anos de chumbo na América Latina. O General Augusto Pinochet, ex-presidente do Chile, ex-comandante-em-chefe e capitão-general do Exército chileno e um dos principais responsáveis pela barbárie e o genocídio que assolou o Cone Sul nos anos 70, pareceu, por alguns instantes, ter esquecido suas 'façanhas'.

Naquele outubro de 98, o então senador vitalício pelo Chile, saiu de seu país sem os devidos resguardos judiciais e acabou preso num hospital de Londres, onde se recuperava de uma cirurgia de hérnia de disco.

Após 530 dias de prisão domiciliar em Londres, Pinochet voltou ao Chile, dias depois de o governo britânico ter afirmado que ele não estava em condições de enfrentar um julgamento por razões de saúde, e de ter negado sua extradição para a Espanha.

Em agosto de 2000, a Suprema Corte do Chile retirou o foro privilegiado de Pinochet como senador vitalício para que pudesse ser julgado pela Caravana da Morte, que teve 75 homicídios cometidos depois do golpe.

Quatro anos depois, um jornal norte-americano revelava um documento do governo dos EUA segundo o qual Pinochet e sua mulher mantinham contas secretas com até 8 milhões de dólares no banco Riggs. O juiz Sergio Muñoz é nomeado para investigar o caso no Chile. O Estado chileno processa Pinochet por fraude fiscal. O presidente Ricardo Lagos divulga um levantamento em que 28 mil casos de tortura são detalhados. E o juiz Juan Guzmán processa Pinochet por nove seqüestros e um homicídio na Operação Condor.

Sem o poder da farda, o ex- ditador é preso e responde por inúmeros crimes contra a humanidade. Entre os anos de 1973 e 1989, Pinochet comandou uma das mais sangrentas ditaduras militares do continente. Conforme os dados da Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, durante estes anos, foram computados 1.102 desaparecidos e 2.095 mortos.

Após todas essas barbáries, era dizimada uma das mais bem sucedidas e promissoras experiências socialistas. O Palácio La Moneda era bombardeado pelas forças do general Augusto Pinochet. Morria Salvador Allende, presidente do Chile. Calava-se a voz de uma multidão. Era setembro de 1973. Mais precisamente, 11 de setembro de 1973.

Vinte e cinco anos depois, em 1998, cidadãos chilenos perambulavam livres pelas ruas de Santiago, enquanto o ex-ditador agonizava seus últimos dias assustado e preso sobre o chão regado com o sangue de suas vítimas.

'Yo pisaré las calles nuevamente
De lo que fué Santiago ensangrentada
Y en una hermosa plaza liberada
Me detendré a llorar por los ausentes.'

                           Yo Pisaré las calles nuevamente
                                                      Pablo Milanés

Hoje, o tempo revisa a história e faz justiça ao povo chileno. Dia 10 de dezembro de 2006 morreu Augusto Pinochet. Foi-se o tirano. O antigo ditador chileno morreu vítima de infarto do miocárdio e edema pulmonar.

Isabel Allende, filha de Salvador Allende, afirmou que não há nenhuma razão para que ele seja merecedor de honras de Estado. Já o poeta uruguaio Mário Benedetti escreveu que 'os canalhas vivem muito, mas algum dia morrem'. E disse mais o poeta: - 'La muerte no borra nada, quedan siempre las cicatrices. Hurra, murió el cretino!!!'

Os povos uruguaio e argentino, e também o chileno, quando questionados e incitados a falar sobre os anos de chumbo, costumam encerrar a conversa com um definitivo e sonoro: ni olvido, ni perdón!

Pinochet que nunca teve como virtude ouvir o clamor das ruas, por alguns instantes esqueceu seus feitos e se descuidou ao sair de seu país, onde gozava de imunidade como senador vitalício. Mas a história não estava disposta a esquecê-lo. E, menos ainda, a perdoá-lo. Aquele que prendia e matava, foi preso e morreu.

No entanto, a história já teimava em condenar o ex-ditador bem antes. Num 14 de setembro de 73, o General pensou ter calado a voz do povo com o assassinato de um poeta popular. Victor Jara foi torturado até a morte. Mas jamais se calou. Morreu gritando de dor e cantando por amor. Amor ao seu povo e aos seus princípios. Princípios de justiça e igualdade. E sua voz ecoa mais forte hoje do que ontem. O ditador está morto e enterrado; e o poeta está vivo e eternizado.

'Líbranos de aquel que nos domina
en la miseria,
tráenos tu reino de justicia
y igualdad.'

                  Plegaria a un labrador
                                     Victor Jara

A vida de Victor Jara simboliza todo um processo de busca de identidade chilena e latinoamericana. Entre outras conquistas, ele buscou dotar sua verve de uma autonomia e uma personalidade integrada ao desenvolvimento de seu país e do continente. A presença da mensagem política nas suas poesias e nas canções foi resultante de uma contemplação atenta da realidade e da necessidade de manifestá-la.

'Yo no canto por cantar
ni por tener buena voz
Canto porque la guitarra
tiene sentido y razón.'

                        Manifiesto
                             Victor Jara

Na obra do poeta, fica claro o enfoque político, propondo, através da música, denunciar os dramas de seu povo e suas mazelas. Após um período de pesquisas, feitas com o grupo Quillapayun, Victor Jara fundou a Dicap – Discoteca del Canto Popular – mostrando aos próprios chilenos, os valores culturais dos camponeses, dos mineiros e a realidade do país, propondo assim uma unidade popular.

'Aquí va todo el pueblo de Chile,
aquí va la Unidad Popular.
Campesino, estudiante y obrero:
compañeros de nuestro cantar.'

                                Venceremos 
                                   (2ª versión)
         Víctor Jara - Sergio Ortega

Victor Jara costumava afirmar: 'Se um autor ou intérprete for um trabalhador revolucionário, projetará sua obra sem elitismo, misturando-se constantemente com a classe trabalhadora. Entre autor e massas populares deve haver um diálogo permanente. E esse diálogo enriquecerá a ambos'.

'Yo no quiero mi pátria dividida,
Cabemos todos en la tierra mia.
Yo me quedo a cantar con los obreros
En esta nueva historia y geografia.'

                                           Aqui me quedo
                       Pablo Neruda / Victor Jara

Aquele setembro de 1973, o povo chileno não esquece e não perdoa. Uma geração inteira foi forjada a mão de ferro. E isso o povo não esquece e não perdoa. Pais, mães, filhos, maridos, mulheres e amigos jamais se encontraram. Se perderam uns dos outros. E isso os chilenos, na sua esmagadora maioria, não esquecem e não perdoam.

Também na Argentina, as Mães da Praça de Maio dizem que não esquecem e não perdoam. Elas explicam que gritar todos os dias por seus filhos desaparecidos é questão de sobrevivência. É o que alimenta suas almas. É o que traz sentido às suas vidas.

No final dos anos noventa, Joan Jara, viúva de Victor Jara, esteve em Porto Alegre lançando seu livro 'Canção Inacabada – A vida e a obra de Victor Jara', no qual descreve sua experiência ao lado do poeta.

No livro, Joan afirma que é impossível viver com ódio, mas argumenta que não pode perdoar a quem jamais mostrou arrependimento. Quando indagada sobre que castigo consideraria adequado a Pinochet, hesitou, mas confessou: – 'Gosto do fato de que ele esteja se sentindo vulnerável'.

Joan lembra que antes de Victor Jara ser levado para o Estádio Nacional do Chile, ainda trocou algumas palavras com ele: - 'Ele só dizia que no momento não poderia chegar em casa por causa do toque de recolher. Que tentaria chegar no dia seguinte. Não me disse, mas depois eu soube, que a Universidade estava rodeada pelos militares. Me disse que me cuidasse...que me queria...que cuidasse das meninas...que me amava...que amava as meninas.'

Joan e as duas filhas do casal, Manuela e Amanda, esperaram por Victor no outro dia. Não chegou. Quando regressou era um corpo crivado de balas. Um corpo de mãos despedaçadas. Um frio exemplo da luta popular nos anos de chumbo.

Victor Jara foi assassinado nos camarins do Estádio Nacional do Chile. Os militares destroçaram suas mãos a coronhaços de revólver. Enquanto suas mãos eram destroçadas, ele animava os presos cantando até não agüentar mais. Antes de cair morto, em meio aos seus companheiros, no centro da violência, o poeta fez ouvir sua voz. E a sua voz era a voz de um punhado de vencidos  cantando 'Venceremos'

'Venceremos, venceremos,
Mil cadenas habrá que romper,
Venceremos, venceremos,
La miseria sabremos vencer.'

                             Venceremos
       Sergio Ortega / Claudio Iturra 

Apesar das mãos destroçadas, Victor Jara continuou cantando até que os militares, se dando por vencidos, tiroteram-lhe as pernas até que caísse. - 'Canta agora, filho da puta', lhe diziam. - 'A ver si ahora cantas huevón'.  

Somente o silêncio de sua morte fez calar sua voz. E seu silêncio fez-se símbolo.

'Te recuerdo Amanda,
La calle mojada
Corriendo a la fábrica
Donde trabajaba Manuel'

              Te recuerdo Amanda
                               Victor Jara

Quando torturou Victor Jara até a morte, o regime ditatorial do General Pinochet imaginou ter calado a voz popular. Enganou-se o tirano. Victor Jara não morreu. A veracidade de seu canto transcende sua própria natureza de indivíduo. E o poeta segue abrindo en los caminos el surco de su destino. La alegria de sembrar não lhe puderam tirar.

* Autor deste blog
Ativista cultural
Radialista
Produtor e apresentador do programa américas
RádioCom 104.5 FM