sábado, 25 de janeiro de 2014



JOAN BAEZ: 
UMA TRAJETÓRIA LUMINOSA


POR SERGIO VAZ


ILUSTRAÇÃO: AMÉRICAS



  Ela não precisa se reinventar: atravessa as décadas, as modas, as mudanças, em maravilhosa linha reta. 

Há artistas que se reinventam ao longo das décadas – como, por exemplo, a tão boa atriz quanto boa cantora Marianne Faithfull, ou Bob Dylan, que Joan Baez abençoou e para quem abriu o caminho da fama, no início da carreira dele, quando ela já era a rainha, a madona de voz puríssima.

Joan Baez não precisa se reinventar.

Sua trajetória é uma luminosa linha reta – de uma coerência absolutamente ímpar, impressionante, fascinante. As modas chegam e vão embora, o gosto do respeitável público muda, modas antigas voltam, o mundo muda, volta atrás, muda de novo, mas a rota de sua vida permanece sempre na mesma direção. Se às vezes parece que o mundo não está mais prestando tanta atenção a Joan Baez, o problema é do mundo, não dela.


Uma das artistas mais importantes da história, ela está numa belíssima fase, beirando os 70 anos de idade, comemorando 50 anos de estrada – e quanta estrada! Neste ano de 2010, aos 69 anos recém-completados, foi uma das principais estrelas de um concerto na Casa Branca, patrocinado pela primeira-dama Michelle Obama; lotou o Coliseu de Lisboa e, num show de duas horas, emocionou a platéia ao cantar, “com pronúncia quase perfeita”, “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, a senha para a Revolução dos Cravos, que em 1974 derrubou a ditadura salazarista. Na Espanha, foi condecorada com a Ordem das Artes e das Letras, que vem se somar a diversas outras honrarias que já recebeu, como o título de Chevalier da Legion d’Honneur da França.


Em 2009, foi lançado em DVD (acompanhado de um CD) um bem cuidadíssimo documentário – Joan Baez – How Sweet the Sound – que passa em revista toda a sua trajetória, com imagens de apresentações e entrevistas ao longo de meio século, filmes caseiros de quando era garotinha, mais depoimentos de diversas figuras importantes e interessantes, como o reverendo Jesse Jackson, David Crosby, Roger McGuinn e, sim, é claro, ele, Bob Dylan.

Dois de seus discos mais recentes, Bowery Songs, ao vivo, de 2005, e Day After Tomorrow, de 2008, o 24º original gravado em estúdio, são dos melhores de sua imensa, fantástica, extraordinária, única carreira. Em seus últimos discos, tem regravado canções que cantava meio século atrás, ao lado de outras criadas por compositores que sequer haviam nascido quando ela, aos 21 anos de idade, foi capa da revista Time, no distante novembro de 1962 (reproduzida logo abaixo). Nas suas seguidas turnês pelo mundo, muitas vezes é acompanhada por artistas que poderiam ser seus filhos, ou até netos, e que aprenderam a cantar, e em boa medida a enxergar o mundo, com ela.


Diversas fases, diversos estilos, os mesmos temas

Embora a maior parte das pessoas só consiga associar o nome de Joan Baez às canções folclóricas e “de protesto” do início dos anos 60, sua carreira teve diversas fases. Cantou folk songs, depois canções inspiradas na tradição folk criadas por seus contemporâneos – a geração que explodiu nos anos 60, Bob Dylan, Tim Hardin, Phil Ochs, Richard Fariña, Eric Andersen –, depois passou pelo country, fez pop da melhor qualidade, andou até pelos standards da grande canção americana, compôs ela própria dezenas de canções (belas, belas canções), recriou pérolas do rock e do pop do repertório dos Beatles, Rolling Stones, Simon & Garfunkel, Dire Straits, Peter Gabriel, Elvis Costello, Tom Waits, Jackson Browne, e, mais recentemente, apresentou músicas dos compositores mais jovens que seguiram seus passos – Tracy Chapman, Dar Williams, Eliza Gilkynson, Patty Griffin, Steve Earle, Natalie Merchant.

Cantou em inglês, em francês, em alemão, em espanhol, em português, em ídiche, em russo. Visitou e apresentou-se em todos os continentes, inclusive em países que a História aposentou, como a União Soviética, a Tchecoslováquia e o Vietnã do Norte; passou por Inglaterra, Irlanda, Alemanha, Espanha, Portugal, França, Itália, Polônia, Nicarágua, Chile, Argentina, Brasil, Cambodja, Austrália, Canadá, Islândia, Israel, Cisjordânia, Faixa de Gaza, Bósnia.

Passou por todas essas línguas, fases, estilos, mantendo uma trajetória sempre em linha reta, constante, soberbamente coerente. A forma tem muitas variações, mas os temas são sempre os mesmos – os velhos e básicos temas da procura da justiça, do respeito à dignidade das pessoas, do reconhecimento das disparidades, do direito a ser o contrário da maioria.

Pela ordem: um ser humano, uma pacifista, uma cantora


Os temas de suas canções, ela transformou em temas de uma luta permanente, ao longo da vida inteira. O mesmo número de décadas que tem como cantora, Joan Baez tem também como ativista política. Ela é uma daquelas poucas personalidades admiráveis para quem o poema de Bertold Brecht se aplica com perfeição, como uma luva: “Há homens que lutam um dia, e são bons. Há outros que lutam um ano, e são melhores. Há os que lutam muitos anos, e são muito bons. Mas há os que lutam a vida inteira: esses são os imprescindíveis”.

Começou pelo começo, pelo mais básico: a luta pelos direitos civis, pelo fim da segregação racial no seu país. E aí ela teve sorte, assim com também teve sorte a História: era a pessoa certa no lugar certo no momento certo. Esteve lado a lado com o reverendo Martin Luther King, a figura mais importante do movimento pelos direitos civis, em diversas ocasiões, de pequenas reuniões até a gigantesca marcha sobre Washington em agosto de 1963, que reuniu 250 mil pessoas – aquela em que o pastor pronunciou seu célebre discurso que começava com “Eu tenho um sonho”. Quem cantou, naquele dia memorável, o hino do movimento, “We Shall Overcome”, foi ela, e teria que ser ela: embora com apenas 22 anos, Joan Baez já era a grande voz do renascimento da música folk, “a rainha do folk”.


Ela cantaria de novo “We Shall Overcome” 47 anos mais tarde, no dia 9 de fevereiro de 2010, no Salão Leste da Casa Branca, no evento chamado “In Performance at the White House: A Celebration of Music from the Civil Rights Movement”, do qual participou também Bob Dylan, diante de uma seleta platéia de convidados do primeiro negro a ocupar a Presidência dos Estados Unidos. Em 47 anos, aquele país mudou demais, em várias coisas para melhor – e aquela celebração era exatamente uma homenagem a isso.



Quando as leis segregacionistas foram finalmente banidas, em 1964, durante a presidência de Lyndon B. Johnson, Joan Baez já estava na linha de frente da luta contra o envolvimento americano no Vietnã, e de apoio ao movimento do draft resistance, a resistência à convocação para o serviço militar obrigatório. Recusou-se a pagar, no imposto de renda, a percentagem referente aos gastos militares do governo federal.

Foi presa algumas vezes pela participação nessas ações – nunca por muito tempo, é verdade. Era presa, passava algumas horas ou dias na cadeia, saía e, como diz David Crosby, dava uma passadinha em casa, tomava um banho, comia alguma coisa, e voltava para o local dos protestos. “É um tipo de coragem que você não vê todo dia”, constata Crosby, ele mesmo um batalhador – e vencedor – de uma dura luta contra as drogas.

Joan visitou o inimigo Vietnã do Norte em 1972, e estava em Hanói quando a capital sofreu um dos maiores bombardeios de toda a História; voltou de lá com gravações de sons, vozes de pessoas, ruídos de bombardeio, que depois botaria em disco, Where Are You Now, My Son? – um lado inteiro de um LP ocupado por uma colagem de barulhos. É um tipo de coragem que não se vê todo dia.

Casou-se em 1968 com um ativista, um dos líderes do movimento contra a guerra e o alistamento militar, David Harris, que foi condenado a três anos de prisão por sua atuação. O casamento resultaria em um documentário sobre a luta contra o alistamento militar, Carry it On, de 1970, um disco dela dedicado a ele, David’s Album, de 1969, uma belíssima canção escrita por ela, “A Song for David”, e no único filho dela, Gabriel, que hoje a acompanha em seus shows. Gabriel nasceu em 1969, quando o pai ainda estava preso. Em 1971, Joan e David se divorciaram.

E nisso – com perdão pela breve tergiversação – a trajetória de Joan Baez a aproxima muito de outra grande artista americana, a atriz Jane Fonda. Como Joan, Jane visitou o Vietnã do Norte durante a guerra, o que lhe valeu o apelido de Hanoi Jane e o ódio da direita raivosa; e, como Joan, Jane também se casou com um ativista político e opositor da guerra do Vietnã, Tom Hayden.


Joan Baez fundou ou participou da fundação de diversas entidades pela não-violência, em obediência aos princípios do Mahatma Gandhi e de Martin Luther King. Participou de todos os protestos possíveis e imagináveis contra a violação dos direitos humanos em ditaduras de todas as matizes ideológicas – União Soviética, Vietnã do Norte, Chile, Espanha, Cambodja.

Em 1977, quando a ditadura de Franco ainda não havia sido derrubada, derrubou uma das proibições de décadas que vigoravam na Espanha, ao cantar na TV a banida “No Nos Moverán”. Visitou e se apresentou em campos de refugiados no Cambodja, na Tailândia. Esteve na Bratslávia quando os países do Leste europeu iniciavam a transição da ditadura comunista para a democracia. Cantou nas ruas de Sarajevo destroçada pela insana guerra racial nos Bálcãs.

Foi proibida de se apresentar em quatro países – a União Soviética e três nações latino-americanas que estavam então sob ditadura militar de direita, Argentina, Chile e Brasil. (No dia em que deveria se apresentar pela primeira vez em São Paulo, eu estava lá no Tuca, para escrever sobre o show para o Jornal da Tarde. Nunca fui um bom resenhista de shows, mas era ainda pior repórter, e fiz uma matéria bem fraquinha sobre a proibição da apresentação, anunciada na última hora, no teatro histórico da PUC já absolutamente lotado, na Rua Monte Alegre, nas Perdizes, o bairro onde moro há mais de 30 anos.)


Continua tão ativista política, em 2010, quanto era em 1962. 

Numa entrevista coletiva no início dos anos 60, quando ela estava no auge da fama como “the queen of folk music”, disse ao bando de repórteres que, se era para botar rótulos nela, gostaria que o primeiro rótulo fosse “ser humano”. Em segundo lugar, viria o rótulo de “pacifista” e, em terceiro, o de “cantora folk”.