sexta-feira, 8 de novembro de 2013



CHICO BUARQUE DO BRASIL

I


DO LIVRO
HISTÓRIA DE CANÇÕES
DE WAGNER HOMEM


ILUSTRADO POR
AMÉRICAS



O país que viu nascer a nova geração de compositores da MPB (Música Popular Brasileira) saía do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Enquanto o mundo tentava curar as feridas da Segunda Guerra, no Brasil o estado de direito ainda engatinhava quando foi sacudido pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. Em que pese o trauma, as eleições daquele ano ocorreram na data prevista, e em 1955 Juscelino se elegeria presidente da República.

Não obstante as tentativas da UDN (União Democrática Nacional), sob a liderança de Carlos Lacerda, de impedir sua posse, ele assumiu em 31 de janeiro de 1956. Imediatamente solicitou ao Congresso a suspensão do estado de sítio e aboliu a censura à imprensa. Na primeira reunião ministerial, expôs o que ficou conhecido como Programa de Metas, que, com o lema “Cinquenta anos em cinco”, fazia uma clara opção pelo desenvolvimento quase que a qualquer custo.


A ampliação e diversificação do parque industrial, a construção da nova capital, Brasília, com projeto do urbanista Lúcio Costa e prédios do arquiteto Oscar Niemeyer, e a conquista da Copa do Mundo de Futebol, na Suécia, em 1958, infundiam na população um orgulho jamais visto.

Ao desenvolvimento econômico correspondia uma efervescência cultural. Em 1955, Nelson Pereira dos Santos leva às telas o filme Rio 40 graus, que se tornou um marco do que viria a ser conhecido como Cinema Novo.


No teatro, o povo torna-se protagonista na peça Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri, encenada pelo Teatro de Arena, em São Paulo, em 1958. No mesmo ano, também em São Paulo, é criado o Teatro Oficina, cujas produções balançaram a cena durante décadas. Ainda na dramaturgia, surgem novos autores, como o polêmico Plínio Marcos, com a peça Barrela.

Em agosto saía pela Odeon o compacto simples de João Gilberto trazendo no lado B “Bim bom”, de sua autoria, e no lado A “Chega de saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que daria nome ao revolucionário LP de 1959. 

Era a Bossa Nova, estilo que até hoje, 51 anos depois, influencia músicos em todo o planeta. 

Chico era, então, um adolescente.

Nascido no Rio de Janeiro em 19 de junho de 1944, Francisco Buarque de Hollanda foi o quarto filho dos sete que o historiador Sérgio Buarque de Holanda teve com Maria Amélia Cesário Alvim. Dois anos depois, Sérgio é convidado a dirigir o Museu do Ipiranga, e a família transfere-se para São Paulo, onde nascem as três irmãs mais novas. Essa pequena trupe muda-se em 1953 para a Itália, lá permanecendo por dois anos, enquanto Sérgio leciona na Universidade de Roma.

Embora Chico afirme em diversas entrevistas que a atração pela literatura é anterior ao gosto pela música, um fato chama a atenção: antes de partir para Roma, deixou para a avó um bilhete, de uma crueldade ingênua, só permitida às crianças: “Vovó Heloísa. Olhe vozinha não se esqueça de mim. Se quando eu chegar aqui você já estiver no céu, lá mesmo veja eu ser um cantor do rádio”.

São dessa época suas primeiras aventuras musicais – marchinhas de carnaval, influência, talvez, do que ouvia no rádio da babá índia. Curiosamente, foi essa índia que, anos depois, introduziu a primeira televisão na casa dos Buarque de Holanda.


Na Itália, Chico estudou em escola americana, e em pouco tempo falava três idiomas: português em casa, italiano na rua e inglês na escola. De volta a São Paulo, cursou o Colégio Santa Cruz, de padres canadenses progressistas, e ali escrevia contos e crônicas no jornal escolar Verbâmidas. A experiência levou-o a acreditar que um dia seria escritor.




Mas o LP Chega de saudade adiou esse sonho por alguns anos. A batida inconfundível de João Gilberto, com seus acordes econômicos, o arrebatara para a música. Não só a ele. Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros que viriam a integrar o primeiro time da MPB foram picados pela mesma mosca. 

A forma intimista da Bossa Nova, com apenas um banquinho e um violão, sem a necessidade de um vozeirão impostado, facilitava a vida de quem desejasse se aventurar por esse caminho. Chico se lembra de que passava horas com um amigo tentando imitar os acordes do genial baiano. Da imitação para a composição foi um pulo.


Uma de suas primeiras músicas, “Canção dos olhos” (1959), cantada à exaustão nos barzinhos e shows escolares, é uma cópia deslavada do estilo de João Gilberto, conforme o próprio Chico reconhece em sua entrevista ao MIS (Museu da Imagem e do Som) em 1966.

Em 1961 assume a presidência da República o ex-governador de São Paulo, Jânio Quadros, que renuncia após sete meses de uma gestão tumultuada.


Não menos tumultuadas foram a posse e o governo do vice João Goulart.

Identificado pelos militares como homem de esquerda, Jango assumiu com poderes reduzidos, num improvisado regime parlamentarista instaurado em setembro de 1961 e que duraria até o início de 1963, quando um plebiscito restaurou o presidencialismo.

Investido de poderes presidenciais, Jango adotou o projeto do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) denominado Reformas de Base – um conjunto de propostas que visava promover alterações nas estruturas econômicas, sociais e políticas que garantissem a superação do subdesenvolvimento e permitissem uma diminuição das desigualdades sociais.


No cenário externo, vivia-se a afirmação da Revolução Cubana (1958-59) e a crise dos mísseis soviéticos (1962) instalados em Cuba – que por pouco não levou a um confronto nuclear as duas superpotências de então, União Soviética e Estados Unidos.

Em 1963, Chico ingressa na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), menos por escolha do que por falta de alternativa. Para música não havia boas escolas, e o curso de Letras era tido, na época, como coisa para mulheres. E do futebol, outra de suas paixões, ele desistiu após ter treinado no minúsculo Clube Atlético Juventus, na Mooca, em São Paulo. O urbanismo, então, afigurava-se como a saída para quem, desde criança, desenhava cidades imaginárias.


O golpe de 1964 jogou um balde de água fria na efervescência política que ele vivia no ambiente universitário, ainda que de forma discreta. Decepcionado, sua atenção se voltava cada vez mais para a música. Logo, o “Carioca”, como era conhecido, batizou de “sambafos” os encontros com amigos num barzinho próximo ao Mackenzie, para tocar violão, cantar e, evidentemente, exalar o hálito da bebida que consumiam. 

O hino do grupo era o samba “Oba”, de Osvaldo Nunes, que exaltava o bloco carnavalesco Bafo da Onça.

Essa onda que eu vou
Olha a onda, iaiá
É o Bafo da Onça que acabou de chegar
Essa onda que eu vou
Olha a onda, iaiá
É o Bafo da Onça que acabou de chegar


Pipocavam em São Paulo shows de música em que na primeira parte se apresentavam os novatos e na segunda apareciam nomes já consagrados. O Carioca do sambafo participou de vários deles, mostrando suas composições. Além de “Canção dos olhos”, apresentava “Marcha para um dia de sol” (provavelmente de 1960-61, já que nem Chico se lembra mais).

Eu quero ver um dia
numa só canção
o pobre e o rico
andando mão em mão
que nada falte
que nada sobre
o pão do rico
o pão do pobre...


Pela abordagem ingênua da questão social, a canção logo foi apelidada, para desgosto do autor, de “João XXIII”, numa referência ao papa que publicara as encíclicas Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963). 

É possível, porém, que o tom conciliatório da letra derive de uma experiência vivida por Chico quando ainda estudava no Santa Cruz. Como membro da OAF (Organização de Auxílio Fraterno), ele ia com regularidade até a região da Estação da Luz entregar cobertores e outras doações aos moradores de rua.

Em entrevista para Tarso de Castro, na Folha de S.Paulo de 11-9-1977, mesmo considerando o caráter assistencialista da ação, ele admite a importância que isso teve na sua formação: “... pra um cara como eu, que morava ali no que seria a Zona Sul de São Paulo [...] e que estudou em colégio de menino rico, de repente ter essa missão, duas vezes por semana, era muito importante”.

Levado pela irmã mais velha, Miúcha, Chico cantou a marcha num dos redutos da boa música da época, o João Sebastião Bar, onde ouviu a promessa da grande estrela do local, Claudette Soares, de que iria gravá-la. Ficou só na promessa. A cada novo disco da cantora ele corria pra ver se sua música estava lá – e nada.


Na última hora, saía o disco, eu procurava e não tinha a música, e eu morria de triste [...] Ela foi gravada quando eu já não acreditava nela. Quando eu acreditava nela, ninguém acreditava em mim, porque eu era muito moleque. Quando parei de acreditar nela, eu já estava mais crescido, então resolveram gravar – mas aí a música já não tinha mais sentido nenhum...admitiria no depoimento ao MIS.


Ele se referia ao fato de a cantora Maricene Costa ter gravado a música em 1964, quando ele já havia perdido o interesse por ela: “Nem João XXIII concorda com aquele tipo de ecumenismo social. Não adianta conciliar rico e pobre, o negócio é não haver distinção”, diria ele em entrevista para a revista Realidade em 1967.

Gostando ou não, foi a primeira vez que suas composições puderam ser ouvidas em disco, embora na voz de outrem. Era só treino. O jogo ainda estava por começar.