terça-feira, 2 de setembro de 2014



Sembomatsu-Bára


De Atahualpa Yupanqui



Traduzido por Enilton Grill



Ay del que llega sediento
y mira el agua correr.
Y dice: «La sed que siento
no se calma con beber.
Antonio Machado



Este é o lago sagrado, o Biwa, de claras águas aceradas. Um horizonte de colinas e cerros o separam do mar.

Quando a flor da cerejeira começa a antecipar primaveras na montanha, a neve rompe seu silêncio e ensaia um canto de cristal sobre as pedras. E se faz fio d'água, caminho viajante, arroio travesso. E todos seus frescores vão ao Biwa. E contam as coisas que ouviram na montanha durante o inverno. Contam as canções dos lenhadores (homens de machado afiado, cara gris e sapatos de madeira). Contam o amor das meninas por entre os pinheiros, a ronda dos caçadores, a lenda que sempre está na boca dos avós, guardiães da arte dos menestréis.

Por eles, pelos avós, sabem as crianças o melhor e mais antigo da comarca. Sabem e não duvidam, que uma vez houve um gigante, muito gigante e muito sábio que extraiu lodo do fundo do Biwa, e amassando-o com pedras de cores fez uma montanha que chamou Fujiyama, para que todos os seres o vejam como símbolo e saibam que está feito com vontade e com tempo, com toda a força da fé.

Este é o Biwa, entre o Fuji e o mar. E existe um cerro menor, o Shinyu-óka, que significa: Cerro Callado, Cerro del Silencio. Até o seu topo vão os pescadores depois de uma desgraça. Quando o mar se faz tumba, os homens da costa preparam um arpão de madeira. E o cobrem de flores. E sobre o boné, uma tocha. E vão em caravana por um caminho estreito até o topo do Shinyu-óka. Ali descansam um instante, e logo, todos de pé na noite povoada de candeeiros, pensam nos jovens que o mar sepultou. Ninguém fala. Pensam o melhor, que é a melhor maneira de rezar.

O Cerro del Silencio recebe todas as vibrações, que um dia hão de rodar até o Biwa, quando o sol de abril converter as neves em cânticos e choros.

Uma fria manhã de fevereiro andei essa comarca, desde Hamamátsu até Kioto, a antiga capital del Nipón.

Como um rabdomante com sua vara de vime, eu procurava também por um jaguel de lendas, portando uma guitarra argentina e um velho poncho provinciano. Assim atravessei o túnel de nove quilômetros. Assim encontrei o caminho do Shinyu-óka. Assim cheguei á tarde a uma aldeia, Sembomátsu-Bára, o «Cerro de los mil pinos». Aí no mais, passando os pequenos arrozais, o Biwa. E no outro lado, o mar.

É muito difícil penetrar nas entranhas da alma japonesa. Este povo tem muitos séculos de vida-caracol, metido em si mesmo. Os deuses manejam toda sua conduta. Em meio ao povo, o budismo, especialmente a seita dos Tzen. Em meio à burguesia e à velha aristocracia, o xintoísmo, que é a autêntica religião japonesa. E desde suas comidas até sua saudação, a viagem, a família, o lugar, a palavra e a cor das roupas, tudo está determinado por um antigo ritual.

Todos se ajudam para viver, mas ninguém tenta evitar a morte de ninguém. Talvez por isso o suicídio é considerado pelos sociólogos como endemia permanente no país.

Talvez por isso uma noite, no Sembomátsu-Bára, morreu o último poeta romântico da região: Boksuí.

Passada a tragédia da guerra, Boksuí voltou a sua aldeia. Como era lenhador, voltou para as montanhas e seguiu trabalhando em sua profissão. Oficio ritual, pois antes de ferir a madeira se abraçava à árvore e beijava a casca, como quem se despede de um ser querido.

Duas vezes por semana carregava de gravetos um velho carro e rumava para a cidade. Repartia sua lenha entre a clientela, e ao passar por um pequeno jornal deixava um poema, e voltava logo em seguida, lentamente como si carregasse toda a paisagem sobre seu coração, à sua cabana no «Monte de los mil pinos»

Mas a guerra havia trazido a destruição e a pobreza. E as pessoas simples da cidade não podiam pagar por sua mercadoria. Boksuí disse: «Não importa». E seguiu por muito tempo cuidando do mesmo trabalho, fazendo versos, mirando as brumas do Biwa no inverno, vendo longe os tetos e as curtas chaminés por onde saia a fumaça de dentro das casas. E a fumaça era a alma de seus pinheiros, o rigor de suas mãos, o beijo e o machado do homem na primeira luz da manhã.

Já não tinha tabaco para seu cachimbo. Sua caixa de legumes estava vazia. Mas Boksuí pensava nos demais, nos vizinhos, nas crianças, no inverno brabo.

Um meio-dia desceu à cidade com seu carro carregado de lenha. Era sua última viagem, e ele talvez já soubesse.

Ao passar pelo pequeno jornal de seus amigos deixou um poema:

Cuántos montes tendré que atravesar,
cuántos ríos, cuántos lagos,
para llegar, al fin, a una región
donde no tenga cabida
la tristeza...
(Fragmento do último poema de Boksuí)

Retornou a sua cabana de Sembomátsu-Bára. Os aldeões o encontraram morto sobre seu «tatámi», a esteira de juncos. Em seu fogão não havia sequer rastros de um pedaço de lenha. Toda ela havia dado, havia repartido por aí. Quando a morte o foi buscar, acabara de completar 44 anos de idade. Mais de que que uma grande lembrança, deixou seus poemas, que os amigos reuniram em um volume com o título de seu lugar de morar: Sembomátsu-Bára.

Todos os anos, quando completa um novo aniversário de sua morte, vão à cabana de Boksuí os poetas, os pintores e os aldeões. Ali acendem o fogão e jogam ervas aromáticas. E dizem poemas e cantam alguma canção.

Eu havia querido cantar aquela tarde, mas apenas pude cajonear una vidala sem palavras: Lloran las ramas del viento. E de fato, havia um vento estranho que passava assobiando por entre os pinheiros, estremecendo os juncos da beira do Biwa.
ATAHUALPA YUPANQUI




EL MONTE DE LOS MIL PINOS
FAIXA 05
CD LA PALABRA
GRABACIONES INEDITAS
ATAHUALPA YUPANQUI
2000

LLORAN LAS RAMAS DEL VIENTO
FAIXA 12
ATAHUALPA YUPANQUI
1971