sexta-feira, 13 de janeiro de 2012




A REVOLUÇÃO SANDINISTA



POR EDUARDO GALEANO



Do livro 
'Memórias do Fogo - Vol. III'
O Século do Vento
1998
 


1963
RIO COCO

Nos ombros leva o abraço de Sandino,

que o tempo não apagou. Trinta anos depois, o coronel Santos López volta á guerra, na selva do norte, para que a Nicarágua seja.

Há um par de anos nasceu a frente Sandinista. Foi nascida, por Santos López e Carlos Fonseca Amador e Tomás Borge, além de outros rapazes que não conheceram Sandino mas querem continuá-lo. A tarefa custará sangue, e eles sabem disso:

- Tanta imundície não pode ser lavada com água, por mais benta que seja – diz Carlos Fonseca.

Perdidos, sem armas, ensopados pela chuva eterna, sem comer mas comidos, fodidos, perambulam pela selva os guerrilheiros. Não há pior momento que o pôr-do-sol. O dia é dia e a noite, noite, mas o entardecer é a hora de agonia e espantosa solidão; e os sandinistas não são nada ainda, ou quase nada.


1976
SELVA DE ZINICA

Carlos

criticava na frente, elogiava nas costas.

Olhava feito galo bravo, por miopia e fanatismo, bruscos olhos azuis de quem via além dos outros, homem de tudo ou nada; mas as alegrias o faziam saltar como guri e quando dava ordens parecia que estava pedindo favores.

Carlos Fonseca Amador, chefe da revolução da Nicarágua, caiu lutando na selva.

Um coronel traz a notícia até a cela onde Tomás Borge está arrebentado pela tortura.

Juntos tinham andado muito caminho, Carlos e Tomás, desde o tempo em que Carlos vendia jornais e caramelos em Matagalpa; e juntos tinham fundado, em Tegucigalpa, a Frente Sandinista.

- Morreu – diz o coronel.

- O senhor está enganado, coronel – diz Tomás.


1977
MANÁGUA

Tomás

Atado a uma argola, tiritando, todo encharcado de merda e sangue e vômito, Tomás Borge é um monte pequeno de ossos quebrados e nervos despidos, um farrapo estendido no chão esperando o próximo turno de suplício.

Mas esse resto dele ainda pode navegar por secretos rios que o viajam além da dor e da loucura. Deixando-se ir chega à outra Nicarágua; e a vê.

Através do capuz que amassa sua cara inchada pelos golpes, a vê: conta as camas de cada hospital, as janelas de cada escola, as árvores de cada parque, e vê os adormecidos piscando, deslumbrados, os mortos de fome e os mortos de tudo que estão sendo acordados pelos sóis recém-nascidos de seu vôo.


1977
ARQUIPÉLAGO DE SOLENTINAME

Cardenal

As garças que estão se olhando no espelho, erguem os bicos: já retornam as barcas dos pescadores, e atrás delas as tartarugas que vêm parir na praia.

Num barracão de madeira, Jesus como sentado na mesa dos pescadores. Come ovos de tartaruga e carnes de bonitos recém-pescados, e come mandioca. A selva, buscando-o, mete seus braços pelas janelas.

À glória deste Jesus escreve Ernesto Cardenal, o monge poeta de Solentiname. À sua glória canta o pássaro clarineiro, ave sem adornos, sempre voando entre pobres, que nas águas do lago refresca as asas. E à sua glória pintam os pescadores. Pintam quadros fulgurantes que anunciam o paraíso, todos irmãos, ninguém patrão, ninguém peão; até que uma noite os pescadores que pintam o paraíso decidem começar a fazê-lo e atravessam o lago e se lançam ao assalto do quartel de San Carlos.

Da escuridão, a coruja promete confusões:

- Fô-didu! Fôô-didu!

Muitos são mortos pela ditadura enquanto os buscadores do Paraíso caminham pelas montanhas e os vales e as ilhas da Nicarágua. A massa se levanta, o grande pão se eleva...


1978
MANÁGUA

‘ O Chiqueiro’:

assim o povo nicaragüense chama o Palácio Nacional. No primeiro andar deste pretensioso partenon discursam os senadores. No segundo, os deputados.

Num meio-dia de agosto, um punhado de guerrilheiros comandados por Edén Pastora e Dora Maria Téllez assalta o chiqueiro e em três minutos se apodera de todos os legisladores de Somoza. Para recuperá-los, Somoza só tem um remédio: libertar os sandinistas presos. O povo ovaciona os sandinistas ao longo do longo caminho ao aeroporto.

Este vai sendo um ano de guerra contínua. Somoza o inaugurou mandando matar o jornalista Pedro Joaquín Chamorro. Então o povo em fúria incendiou várias empresas do ditador. As chamas arrasaram a próspera Plasmaféresis S.A., que exportava sangue nicaragüense aos Estados Unidos; e o povo jurou que não descansará até enterrar o vampiro, em algum lugar mais escuro que a noite, com uma estaca cravada no coração.


1979
SIUNA

Retrato de um trabalhador da Nicarágua

José Villareina, casado, três filhos. Mineiro da empresa norte-americana Rosario Mines, que há setenta anos derrubou o presidente Zelaya. Desde 1952, Villareina escava ouro nos socavões de Siuna; mas seus pulmões não estão ainda totalmente apodrecidos.

À uma e meia da tarde do dia 3 de julho de 1979, Villareina surge por uma das chaminés do socavão e um vagão de minério arranca-lhe a cabeça. Trinta e cinco minutos depois, a empresa comunica ao morto que de acordo com o disposto nos artigos 18, 115 e 119 do Código de Trabalho, está despedido por não ter cumprido o contrato de trabalho.


1979
NA NICARÁGUA INTEIRA

Corcoveia a terra

Mais que em todos os terremotos juntos. Os aviões sobrevoam a selva imensa arrojando napalm e bombardeiam as cidades ouriçadas de barricadas e trincheiras. Os sandinistas se apoderam de León, Masaya, Jinotega, Chinadega, estelí, Carazo, Jinotepe...

Enquanto Somoza espera um empréstimo de 65 milhões de dólares, que conta com a aprovação do Fundo Monetário Internacional, em toda Nicarágua luta-se árvore a árvore e casa a casa. Disfarçados atrás de máscaras ou lenços, os garotos atacam com fuzis ou facões ou pás ou pedras ou o que for; e se o fuzil não é de verdade, o de brinquedo serve para impressionar.

Em Masaya, que em língua índia significa cidade que arde, o povo, sábio em pirotecnia, converte os tubos de água em canhões de morteiros e também inventa a bmba de contato, sem mecha, que explode quando alguém a toca. No meio do tiroteio caminham as velhinhas carregando grandes sacolas cheias de bombas, e vão distribuindo-as como quem distribui o pão.


1979
NA NICARÁGUA INTEIRA

Que ninguém fique sozinho,

que ninguém se perca, que está armada a zorra, arrebentou a merda, o grande corre-corre, o povo altivo lutando no peito contra tanques e blindados, caminhões e aviões, rifles e metralhadoras, todo mundo na bagunça, daqui ninguém se manda, sagrada guerra minha e tua e não guerrinha de rifa e racha, povo fera, arsenal caseiro, lutando na raça, se você não se matar matando vai morrer morrendo, que mano a mano é o jeito, todos com tudo, sendo povo.


1979
MANÁGUA

‘É preciso estimular o turismo’,

ordena o ditador enquanto ardem os bairros orientais de Manágua, incendiados pelos aviões.

Do bunker, grande útero de aço e cimento, Somoza governa. Ali não se escuta o troar das bombas, nem os uivos das pessoas, nem nada que perturbe o perfeito silêncio; dali nada se vê e nada se cheira. No bunker vive Somoza há tempos, em pleno centro de Manágua mas infinitamente longe da Nicarágua; e no bunker se reúne, agora, com Fausto Amador.

Fausto Amador, pai de Carlos Fonseca Amador, é o administrador geral do homem mais rico da América Central. O filho, fundador da Frente Sandinista, entendia de pátria; o pai, de patrimônio.

Rodeados de espelhos e de flores de plástico, sentados na frente de um computador, Somoza e Fausto Amador organizam a liquidação dos negócios e a limpeza total da Nicarágua.

Depois, Somoza declara pelo telefone:

- Nem vou, nem me vão.


1979
MANÁGUA

O neto de Somoza

Vai, o fazem ir. Na alvorada, Somoza sobe no avião rumo a Miami. Nestes últimos dias os Estados Unidos o abandonaram, mas ele não abandonou os Estados Unidos:

-Em meu coração, eu sempre serei parte dessa grande nação.

Somoza leva de Manágua os lingotes de ouro do Banco central, oito papagaios coloridos e os ataúdes de seu pai e de seu irmão. Também leva, vivo, o príncipe herdeiro.

Anastasio Somoza Portocarrero, neto do fundador da dinastia, é um corpulento militar que aprendeu as artes do comando e do bom governo nos Estados Unidos. Na Nicarágua fundou e dirigiu, até hoje, a Escola de Treinamento Básico de Infantaria, um juvenil corpo de exército especializado no interrogatório de prisioneiros e famoso por suas habilidades: aramados de alicate e colher, estes rapazes sabem arrancar unhas sem quebrar as raízes e sabem arrancar olhos sem machucar as pálpebras.

A estirpe dos Somoza caminha para o desterro enquanto Augusto César Sandino passeia pela Nicarágua inteira, debaixo de uma chuva de flores, meio século depois de seu fuzilamento. Ficou louco este país: o chumbo flutua, a cortiça afunda, os mortos fogem do cemitério e as mulheres da cozinha.


1979
NA NICARÁGUA INTEIRA

Nascendo

Tem poucas horas de idade a Nicarágua recém-nascida dos escombros, verdor novinho entre as ruínas do saqueio e da guerra; e a cantora luz do primeiro dia da Criação alegra o ar que cheira a queimado.


1980
NA NICARÁGUA INTEIRA

Andando

A revolução sandinista não fuzila ninguém; mas do exército de Somoza não sobra nem a banda de música. Às mãos de todos passam os fuzis, enquanto se desencadeia a reforma agrária nos campos desolados.

Um imenso exército de voluntários, armados de lápis e de vacinas, invade seu próprio país. Revolução, revolução, dos que crêem e criam: não infalíveis deuses de majestoso andar e sim pessoinhas simples, durante séculos obrigadas a obedecer e treinadas para a impotência. Agora, aos tropeços, se põem a caminhar. Vão em busca do pão e da palavra: esta terra, que abriu a boca, está ansiosa para comer e dizer.


1980
NA NICARÁGUA INTEIRA

Descobrindo

Cavalgando, remando, caminhando, os brigadistas da alfabetização penetram nas mais escondidas comarcas da Nicarágua. À luz de candeeiros, ensinam a usar o lápis a quem não sabe usá-lo, para que nunca mais sejam enganados pelos vivaldinos.

Enquanto ensinam, os brigadistas compartilham a pouca comida, agacham-se debaixo das cargas e na capina, esfolam as mãos partindo lenha e passam a noite estendidos no chão, aplaudindo mosquitos. 

Descobrem mel silvestre dentro das árvores e dentro das pessoas lendas e quadras e perdidas sabedorias; pouco a pouco vão conhecendo as secretas linguagens das ervas que alegram sabores e curam doenças e mordidas de serpente. Ensinando, os brigadistas aprendem toda maldição e maravilha deste país, seu país, habitado por sobreviventes: na Nicarágua, quem não morre de fome ou peste ou tiro, morre de rir.


1983
RIO TUMA

Realizando

Entre a dignidade e o desprezo andam zumbindo as balas na Nicarágua; e muitos têm a vida apagada pela guerra.

Este é um dos batalhões que lutam contra os invasores. Dos bairros mais pobres de Manágua vieram estes voluntários para as distantes planícies do rio Tuma.

Cada vez que cessa o barulho, Beto, o profe, contagia letras. O contágio ocorre quando algum miliciano pede a ele que escreva uma carta. Beto cumpre, e depois:

- Esta é a última que eu escrevo para você. Ofereço algo melhor.

Sebastián Fuertes, soldador de ferro do bairro El Maldito, homem de uns quantos anos e guerras e mulheres, é um dos que chegou perto e foi condenado à alfabetização. Está há poucos dias quebrando garranchos e rasgando papéis nos respiros do tiroteio, e agüentando com pé firme muita piada pesada, quando chega o 1º de maio e seus companheiros o elegem para o discurso.

Num potreiro cheio de bosta e carrapatos, celebra-se o ato. Sebastián ergue-se sobre um caixote, tira do bolso um papelzinho dobrado e lê as primeiras palavras nascidas de sua mão. Lê de longe, esticando o braço, porque a vista não ajuda, e óculos, não tem.


1983
MANÁGUA

Desafiando

Penachos de fumaça brotam das bocas dos vulcões e das bocas dos fuzis. Os camponeses vão para a guerra em lombo de burro, levando um papagaio no ombro. Deus era pintor primitivo quando imaginou esta terra de falar mansinho.

Os Estados Unidos, que treinam e pagam os contras, a condenam a morrer e a matar. De Honduras esta terra é atacada pelos somozistas.; da Costa Rica, ela é traída por Éden Pastora.

E agora vem o Papa de Roma. O Papa amaldiçoa os sacerdotes que amam a Nicarágua mais que o alto céu e manda calar, com maus modos, os que lhe pedem que reze pelas almas dos patriotas assassinados. Depois de lutar com a católica multidão reunida na praça, vai-se embora, furioso, desta terra endemoninhada.


1983
MANÁGUA

Noticiário

Uma mulher pariu uma galinha num bairro de Manágua, informa o diário nicaragüense La Prensa. Fontes ligadas à hierarquia eclesiástica não desmentem que este extraordinário acontecimento possa ser um sinal da cólera de Deus. A atitude da multidão congregada frente ao papa pode ter transbordado a paciência divina, consideram essas fontes.

Em 1981, tinham acontecido na Nicarágua outros dois milagres de ampla repercussão. A Virgem de Cuapa fez naquele ano uma espetacular aparição nos campos de Chontales. Descalça e coroada de estrelas, do centro de um resplendor que cegou as testemunhas, a Virgem formulou declarações a um sacristão chamado Bernardo. A Mãe de deus manifestou seu apoio à política do presidente Reagan contra o sandinismo ateu e comunista.

Pouco depois, a Virgem da Conceição suou e chorou copiosamente durante vários dias numa casa de Manágua. O arcebispo, monsenhor Obando, compareceu ao altar e aconselhou os fiéis a orarem pedindo perdão à Puríssima. As emanações da Virgem da Conceição cessaram quando a polícia descobriu que os proprietários da imagem de gesso a mergulhavam na água e a trancavam na geladeira durante as noites, para que depois suasse e chorasse, exposta ao intenso calor ambiental, perante a romaria de devotos.


1984
WASHINGTON

‘1984’

O departamento de Estado dos estados Unidos decide suprimir a palavra assassinato de seus relatórios sobre violação de direitos humanos na América Latina e em outras regiões. No lugar de assassinato, deve-se dizer: ilegal ou arbitrária privação da vida.

Faz já algum tempo que a CIA evita a palavra assassinar em seus manuais de terrorismo prático. Quando a CIA mata ou manda matar um inimigo, não o assassina: o neutraliza.

O Departamento de Estado chama de forças de paz as forças de guerra que os Estados Unidos costumam desembarcar ao sul de suas fronteiras; e chama de lutadores da liberdade os que lutam pela restauração de seus negócios na Nicarágua. 

Eduardo Galeano
Do livro MEMÓRIAS DO FOGO III