terça-feira, 25 de outubro de 2011



 SILVIO RODRIGUEZ:

'Voto na minha pátria socialista perfectível; 
para dizer que fecho fileiras como quando era um milicianito de catorze anos.'


Discurso perante a Assembleia Extraordinária Cubana


Publicado em Granma, 26-06-2002


Comandante Fidel,
General Raúl,
Presidente Alarcón,
Membros da Assembleia,
Convidados,
Seres que me escutam:

Compreendo a responsabilidade histórica de manifestar-me hoje aqui, nesta Assembleia Extraordinária, e impressiona-me a beleza do ato.

Ao confirmar princípios que tenham dado sentido às nossas vidas é como se quisessemos gravá-los na trama do tempo. A intenção não é petrificar este instante, porque as petrificações significam morte, mas anunciá-lo hoje e amanhã, como costumam fazer os apaixonados nas árvores e muros. Estamos a escrever os nossos nomes num tronco, numa parede do tempo e todas as nossas histórias, as coletivas e as pessoais, fundem-se em uma só, que clama pelo que a nossa Cuba está a clamar desde que teve noção de si própria: por liberdade, por soberania, por justiça.

Neste empenho há tantos nomes entrelaçados que não creio possível fazer uma contagem exata. Uns são recolhidos pela história e outros não. Como diria Brecht: "Para onde foram os pedreiros no dia em que ficou pronta a Muralha da China?" Os pequenos eventos são parte da matéria que conforma a história. De todo o tipo de fragmentos estamos feitos e cada naco, por minúsculo e modesto que seja, ajuda a desenhar o grande mosaico deste ato. E quem o duvidar, que passe lista aos ofícios, às histórias que aquí se reúnem.

É rara a entrevista em que não perguntam sobre a minha condição de deputado, às vezes com admiração, outras ao contrário, mas sempre com curiosidade. A mim, como sou cubano afeito à Revolução, não me surpreende que o filho de duas famílias pobres esteja a fazer parte da Assembleia, mas como nunca tive vocação de político sempre me sobrecolhe o privilégio de falar em nome de muitos.

No entanto, há uma famosa enciclopédia, editada neste ano, em 2002, que diz: Rodríguez Silvio: A sua influência sobre toda uma geração, juntamente com os seus companheiros da "nova trova cubana" tem sido reconhecida no mundo todo, inclusive por quem não está de acordo com as suas ideias políticas.

Eu confesso que primeiro tive ideias e depois -na realidade muito depois- é que me perguntei sobre o significado da palavra política. Também primeiro deixei à solta a minha vocação de fazer canções e depois é que me perguntei por quê e de que forma estava a fazê-las.

É por isso que não sei a que pouco aconselháveis ideias políticas é que se refere essa enciclopédia. Não sei se está a referir-se a que a minha primeira canção que pudesse considerar-se "política", a escrevi sendo recruta, no acampamento militar de Manágua, lá por 1964 ou 1965, e tratava da discriminação racial. Não sei se se referiram a quando, em Fevereiro de 1968, Haydée Santamaría nos convidou a cantar no Centro da Canção Protesto da Casa das Américas. Suponho que não, porque entre os três trovadores não reuníamos a quantidade suficiente de canções "políticas" como para fazermos um concerto.

- De que é que vocês protestam?- costumavam perguntar-nos a brincar alguns companheiros mais velhos do que nós, os que nos tomavam por jovens algo raros e desviados.

Eu sempre julguei que todas as ocupações e preocupações humanas cabem na poesia e na arte, e com certeza na canção. E que é dever da nossa sociedade socialista defender que assim seja, porque nesses testemunhos se imprimirá parte da nossa memória histórica como povo, além de parte da nossa capacidade inventiva. Acho que as artes não só tem o direito, mas o dever de exprimirem-se, porque isso, juntamente com os dados que chegam à imprensa e outras manifestações, contribui para deixar um registro histórico e suficientemente variado como para que o amanhã compreenda todas as nossas características e possa aprender de nós.

Por exemplo, acreditando na poesia e na arte, aos 20 anos cheguei à conclusão de que a Revolução não era propriedade privada de ninguém, que a Revolução era de todos que fossem capazes de fazê-la e defendê-la. Foi o que disse aos burocratas que se julgavam administradores dos sonhos:

La pobre gente que dispone
de la vida por oscuros corredores,
¿qué se hará?
Y los que venden la palabra,
los que ríen, los que no hablan
¿quiénes los despedirán?
Serán como el insecto aquel,
muriendo solo, sin después
Morir así es no vivir.
Morir así es desaparecer para siempre.

Acreditando na poesia e na arte fui ao mar com a Frota Cubana de Pesca, de onde voltei intacto com estas interrogantes:

Compañeros de historia,
tomando en cuenta lo implacable
que debe ser la verdad, quisiera preguntar
-me urge tanto-
¿qué debiera decir, qué fronteras debo respetar?
Si alguien roba comida
y después da la vida, ¿qué hacer?
¿Hasta dónde debemos practicar las verdades?
¿Hasta dónde sabemos?

Tomado de poesia e arte, pedi a devolução de 11 pescadores em frente do Escritório de Interesses. Nesses dias, alguns apostavam em bloquear-nos e ao mesmo tempo, o povo nomeava-nos os seus representantes num festival. Também naquela altura, junto do Grupo de Experimentaçom Sonora, fui um dos compositores de "Granma", obra que celebra o 20º aniversário desse barco chegando às nossas costas.

Qué sabrá mi niño de doce olas
que no se posaron junto a la arena.
Qué sabrá mi niño de doce olas
que cogían camino al coger vereda.
Qué sabrá mi niño de doce olas
que no se rompieron en el peñasco.
Que sabrá mi niño de doce olas
que volaron tras empujar su barco.

Um dia inesperado chega uma carta de Camagüey, a pedir uma canção sobre Agramonte. E crente da poesia e da arte cometo aquela aproximação da estatua do El Mayor:

El hombre se hizo siempre
de todo material:
de villas señoriales
o barrio marginal.
Toda época fue pieza
de un rompecabezas
para subir la cuesta
del gran reino animal,
con una mano negra
y otra blanca mortal.

Fiéis à poesia e às artes, muitos artistas aterramos em Angola, em plena guerra. Alguns chegamos em Fevereiro de 76 e passamos meses a fazer percursos de Cabinda até Cunene, conhecendo heróis -alguns dos quais estão nesta sala-, às vezes dando as boas noites a companheiros que na manhá seguinte já eram matéria de canções. Entre eles Arides e Ciro Berrios, por quem sempre valerão a pena aqueles sentimentos que diziam:

Si caigo en el camino
hagan cantar mi fusil
y ensánchenle su destino,
porque él no debe morir.

Talvez vivências e canções como estas tenham dado lugar às afirmações da enciclopédia de que falei e também a essas misteriosas ideias políticas que nunca esclareceram e se supõe que professo. Talvez expressões como "eu morro como vivi" não sejam suficientemente devotas da poesia e da arte, e tenham incomodado alguns. Neste tipo de estigma mal velado que querem impingir-nos, quando menos significa umha leitura medíocre da relação que tivemos com os povos. Porque dizer que a gente nos quer apesar das nossa ideias políticas é querer contar uma lorota que ninguém que tenha estado num concerto nosso a engole.

De minha parte, teria que dizer a essas ilustres personalidades que, desde que fui eleito deputado em virtude da democracia -como nós a entendemos-, acho que sou um signo vivente da pluralidade desta Assembleia, já que tenho sido um homem questionado por conflituoso, por criterioso, por libretero, ou quando menos por imprevisível (como se calhar estão a demonstrar estas palavras).

Porém, estou aqui como parte do meu povo, da minha história, da minha Revolução e do meu amigo e irmao Fidel, fazendo-me partícula desta aventura, desta expedição realista e surrealista que dirigimos e protagonizamos todos com ele, para dizer que voto na minha Pátria Socialista perfectível; para dizer que fecho fileiras como quando era um milicianito de catorze anos, molhando-se à noite com um Máuser velho, à espera da bomba atómica que lhe tocava de manhã.

E porque isto acontece já nom sou mais do que o filho de Dagoberto e Argélia, um apaixonado mais a escrever no tempo -e apesar do tempo- num longo ramo que nos chega desde gloriosas profundezas, onde muitos conhecidos e desconhecidos, fazedores e filhos deste povo, gravaram belezas de todos os tamanhos e significados.

Companheiros, permitam-me um recanto onde deixar estes mínimos versos:

Puede que algún machete
se enrede en la maleza;
puede que algunas noches
las estrellas no quieran salir;
puede que con los brazos
haya que abrir la selva,
pero a pesar de los pesares,
como sea, ¡Cuba va!