quinta-feira, 8 de setembro de 2011



 A CARA DO BRASIL


A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho
Ninguém precisa consertar
Se não der certo a gente se virar sozinho
decerto então nunca vai dar
Celso Viáfora
1998



O ALEIJADINHO


Por Eduardo Galeano


O Aleijadinho, criador de plenitudes, esculpe e talha com o toco dos braços. É de uma feiúra horripilante o escultor das mais altas formosuras na região mineira do Brasil. Para não servir a senhor tão horroroso, um dos escravos que ele comprou quis suicidar-se. A doença, lepra ou sífilis ou misteriosa maldição, vai devorando-o a dentadas.

Em troca de cada pedaço de carne que a doença arranca, ele entrega ao mundo novas maravilhas de madeira ou pedra.

Em Congonhas do Campo estão esperando por ele. Poderá chegar até lá? Terá forças para talhar os doze profetas e erguê-los contra o céu azulíssimo? Dançarão sua atormentada dança de animais feridos os profetas anunciadores do amor e da cólera de Deus?

Ninguém acredita que lhe sobre vida para tanto. Os escravos o carregam pelas ruas de Ouro Preto, sempre escondido debaixo do capuz, e amarram o cinzel ao resto da sua mão. Só eles vêem os despojos de sua cara e de seu corpo. Só eles se aproximam desse monstrengo. Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, vai se quebrando; e nenhuma criança sonha que o cola com saliva.



  
 MEMÓRIA DO FOGO 2
As Caras e as Máscaras
Eduardo Galeano
Tradução de Eric Nepomuceno
1a edição: junho de 1997





GARRINCHA

Um dos seus muitos irmãos baptizou-o de Garrincha, o nome de um pássarozito inútil e feio. Quando começou a jogar futebol, os médicos deram-lhe a extrema unção: diagnosticaram que aquele anormal, aquele pobre resto da fome e da poliomielite, burro e coxo, com um cérebro infantil, uma coluna vertebral feita num S e as duas pernas torcidas para o mesmo lado, nunca chegaria a ser um atleta.

Nunca houve um avançado como ele. No Mundial de 58, foi o melhor no seu posto. No Mundial de 1962, o melhor jogador do campeonato. Mas, ao longo dos seus anos nos campos, Garrincha foi mais do que isso: foi o homem que mais alegrias deu em toda a história do futebol.

Quando ele ali estava, o campo era uma pista de circo; a bola, um animal amestrado; o jogo, um convite à festa. Garrincha não deixava que lhe tirassem a bola, criança defendendo a sua mascote, e a bola e ele faziam diabruras que matavam de riso o público: ele saltava sobre ela, e ela brincava por cima dele, escondia-se, ele escapava-se, ela expulsava-o. Pelo caminho, os rivais chocavam entre si, trocavam as pernas, sentiam enjoo, caíam sentados.

Garrincha praticava as suas picardias nos limites do campo, pela faixa direita, longe do centro: criado nos subúrbios, era nos subúrbios que jogava. Jogava para um clube chamado Botafogo, e esse era ele: o incendiário que lançava as chamas aos estádios, louco por aguardente e por tudo o mais que ardente fosse, ele que fugia dos estágios pela janela, porque nalgum longínquo baldio chamava-o uma bola que pedia para ser jogada, uma música que exigia ser tocada, uma mulher que queria ser beijada.

Um vencedor? Um perdedor com sorte. E a sorte não dura. Bem dizem no Brasil que, se a merda tivesse valor, os pobres tinham nascido sem cú.

Garrincha morreu a morte que era sua: pobre, bêbedo e só.









FUTEBOL AO SOL E À SOMBRA
Eduardo Galeano
1995