quinta-feira, 31 de julho de 2014


Encantamento 
no poço lúbrico da memória

Por Carlos Cogoy


“Uma vez, chegara ao confessionário da Matriz e dissera ao padre, de maneira a ser ouvido pelas beatas em volta: não me arrependo de ser pecador – sabe? -; e, por isso, não me importo de te mandar daqui mesmo pra puta que te pariu. Antes havia metido a mão por baixo do vestido de veludo da Virgem – e descobrira, aos berros, que a santa era só uma armação de madeira por dentro, com pés, cabeça e mãos de louça! E desde muito vinha mastigando hóstias, mantendo-as na boca mastigadas, trazendo-as mastigadas para casa, num lenço e – rindo com naturalidade daquilo.” Trecho do conto “La folie et l’amour” que o abre o volume cujo lançamento acontecerá hoje na Bibliotheca Pública Pelotense (BPP). No conto, Aldyr Garcia Schlee expõe alguns dos eixos recorrentes no livro “Memórias de o que já não será” (213 páginas) – publicação da editora “Ardotempo”. No primeiro conto, ao narrar sobre tio “herege”, estão abordagens como a memória que evoca produtos, aparelhos e marcas, bem como a declarada “criação” acerca de pretensa “deslembrança”. Também a conotação lúbrica, que confidencia desejos e peripécias de alcova. Nos textos também o viés provinciano, e as alegorias que misturam imaginação e personagens históricos. A estética literária de Schlee manifesta-se através da prosa que dança, brinca com o leitor, aparece, esconde-se e ressurge. O fluxo tem certa circularidade, o que “gruda” na mente que lê, e consagra o contista como um “baita inventor de tempos e gentes”.

ENCANTAMENTO - Jacinto e Marita chegam no rancho de Doña Celeste. Jacinto segue e Marita fica com a benzedeira. No conto “De Encantamento (e milagres)”, o autor apresenta simpatia da rezadeira. E Jacinto, seguindo os ditos, ficará rico. Mas, o matuto não atina sobre a dinheirama. Riqueza é outra coisa, o mundo está assim. Ricos já o são e não há o que questionar. Já Marita sofre de um silêncio. Fica para ser curada pela benzedeira. O perigo é que a alma deixe o corpo. E Marita, como saber, soltará o pássaro preso na gaiola?

POÇO dialoga com a órfã. Mãe sem posses para criar, e a menina segue para os cuidados da madrinha. Falta abraço, falta a mãe. Vai chegar, manda recados. Em “Conto com um poço”, o pai apunhalado num entrevero de carreira. Como noutros contos do autor, felizmente não se envereda pelo “frio” como algo além da momentânea baixa temperatura, e a opção de Schlee é o calorão e o solaço. Nada demais, portanto, apenas clima.

LUBRICIDADE permeia a quase totalidade dos contos. Em “A Rosaura de Latorre”, a pródiga e talentosa amante, capaz de curar impotentes como o ex-presidente Latorre e o artista Carlos Escayola, pai de Gardel.

MEMÓRIA na paixão de “Seo Clodomiro” pela locomotiva 153, e pela quentura despertada pela mulata Olinda. Segredo, silêncio e as inúmeras estações ferroviárias da região no conto “Paixão pela 153”. Já o conto “Achados e perdidos”, que fecha o volume, labirinto de citações. E a frase rabiscada num banheiro aparece em Garcia Márquez. E Schlee pergunta: “Bah! E como encarar a realidade, senão percebendo que todos pensamos enganá-la, todos pensamos enganar a realidade; mas não enganamos a ficção?”.