sexta-feira, 6 de junho de 2014


Nacos do tempo


Por Milton Schlee


A janela aberta, os olhos correm a velocidade da rua, carros passam levam a manhã que se ia, e o tio sempre atrasado, a ansiedade o deixava atucanado na espera, sempre na espera....bibi, bibi,....bibi, bibiii..o tio chegou, vem correndo pela casa adentro, o tio ta aí, vamos!. Aquelas idas “pra fora”, para campanha, rumo a Restinga eram ansiosamente esperadas, a quebra, o outro mundo ─ o campo.

A Brasília vermelha lotada ganha cancha, asfalto afora rumo à campanha, aqueles fundões lá passando Torrinhas, numa serra braba, um grotão, tinha o lajeado e lááá no ermo, nos fundões sem luz, o inalcançável mundo a parte ─ a casa, sólida, a linha dos paraísos emoldurando o conjunto... o galpão, mangueira, tanque de cimento, o Umbu deslocado grandioso esparramado pelo alambrado, também a cozinha separada, colada a casa, como um grão, o teto baixo, fogão a lenha e o maior perfume de picumã e graxa de ovelha, feijão curtido no cerno de Coronilha que ardia na chapa do fogão.

A primalhada solta a campo, madrugando com os cavalos pra encilhar já na mangueira, a lida empeçava temprano, e se ia à manhã inteira, camperiadas com miles de ovelhas para rebanhar, tocar, tratar, banhar, vacinar, até ficar impregnado com o cheiro das ovelhas até por dentro dos olhos.

Aquele conjunto de prédios maciços, caiados de tempo, cravados naquela coxilha num entroncamento assim como um nó num tronco morrudo... ponto forte, comércio gordo, de um tudo: secos e molhados, ferramentas, sementes, lã, ponchos, capas Renner e botas....bolicho e refeição, ponto de descanso e troca de monta na linha de diligências que fazia a viagem Cacimbinhas – Piratini mundo afora.

Nos tempos de correria, revoluções e peleias era uma fortaleza, um marco na querência. Eram eles estabelecidos, família grande e guapa: tios, irmãos, pais de um mesmo cerno ─ os Lobato, fincados naquele chão.

Tudo trabalhando a moda bicho, criando, comercializando tudo que é tipo de mercadoria, naqueles tempos estava nascendo, fervilhando estâncias em tudo que é terra boa, criações de miles e miles de ovelhas de raça melhor, de “pedigree”; invernando gadaria fina para inúmeras tropeadas, feiras e negócios. Tropeadas inesquecíveis de carga e de tropa, no mais de animalada mansa e chucra, aporreada; cavalhadas de miles de madrinhas, cavalhada de lei...e assim nesse universo o vô passava a juventude até chegar a hora de trabalhar e construir chão para si, uma estância...família.

Tem feita que fossem tempos difíceis de luta, estourava uma tropilha de violência arrastando tudo, varrendo a campanha com fúria, revolvendo vidas. Os comentários eram muitos, os boatos seguros, a qualquer momento o fundunço iria começar... já haviam rumores de piquetes, de bandos organizados que se preparavam para outra patriada, escolha das armas para impor as idéias.

Toda casa de alerta, o bolicho de portas trancadas já haviam dois dias...o correio, os chasques, até a diligência de Piratini estava suspensa como tudo e todos.

Corre, leva os que tu poder para o mato e deixa eles escondidos, te some... esse daqui ta muito cansado vai dar o mal das urina, vamo ter que escondê ele....coloca as crianças e as mulher no quarto dos fundos, no porão e tranca eles lá....o resto cuida da casa, ninguém reage, só fiquem de olho, num naco de tempo batem nas casas um bando, lote de desgarrados, uma mistura braba de tudo que é tipo de imundícia, bêbados, ladrões de toda laia, malevos todos desertados ─ a la cria!, por su conta.

Bateram nos portões, ameaçaram de pronto até que invadiram, entraram a la louca porta adentro, enchendo as mão de tudo, primeiro tudo que era de comida e bebida depois roupas e ponchos, disputaram a socos as capas Renner, e berravam pelas armas, aonde estavam as armas?...o biso com toda calma respondia aos insultos ...até que o tipo que deveria ser o chefe, um paisano, nem alto nem baixo, parrudo, desfigurado, arrancando trapos e vestindo pilchas domingueiras, cola os olhos no vô e diz:...esse gurizote ta suando muito, qual parelheiro em final de carreira...pela marca de suor nos cano da bota a jornada foi longa...aonde esta teu flete, guri de merda?, e num encontrão com o facão já em mãos, intimando respostas, arrasta o guri pela casa aos berros. Aos trancos é jogado de cara numa porta grande, ouve:...abre, abre!!! o velho vem correndo com a chave, na tensão da cena, por pouco não leva um talho de adaga no rosto, num ato de fúria de seu agressor aos berros e gestos impensados.

Entram no recinto escuro impregnado a suor, o ranço da catinga de suor e urina, misturado a miles de esbaforidas... numa massa robusta negra, um zaino, muy fino, de patas longas e finas, banhado de suor espumoso, o homem da meia volta e sai da sala, fecha o portão e grita com os homens: vamos embora, aqui não tem mais nada...carreguem tudo, vamos!...já com os homens montados, a garupa cheia de ponchos, capas, fardos de erva e canha, charque...a guampa de canha corria solta...o homem se vira para o vô e diz: cuida bem do flete, mostra bem na estampa os cuidados dedicados a tão alto preço e fiquem com Dios e lo sinto pelo ocorrido, são tempos de pouca graça e muita desgraça paisano.

Falta muito tio, falta muito pra chegar... te aquieta guri, calma, a tarde corria solta pelo lombo dos alambrados, poeira e estrada pareciam não ter fim...ao longe uma massa escura vai tomando forma, definindo-se em pêlos e corpos, cascos e pisadas, poeira e latidos, um, dois, quatro ginetes desempenhavam seu papel para conter o nervosismo da gadaria assustada, eram eles, o tio buzina, uma alegria em todos os semblantes, eram eles, na culatra seu Julio, o capataz, e seu Locha; no costado, dando rumo a animalada, seu Lucha, os irmãos Lucha e Locha que nunca haviam saído dali, daqueles fundões, mas que traziam o mundo na sua fala pausada e mansa e sua face cor de terra recém arada...e na ponta num tordilho muy fino, garboso, que mais parecia que flutuava do que troteava, firme nos arreios, vinha ele, forte e seguro como um cerro, o vô, o coronel Lobato, sério mas com um olhar que se perdia no tempo, como esses campos sem fim, somente acenou com a cabeça.

A Brasília ainda andou um eito e finalmente parou...vamos desce guri, vamo!, abre a porteira... vamos!, estabanado, atrapalhado solta a tranca, agarra o pique e abre a porteira, pronto, era outro tempo, a realidade perdera-se, misturava-se a histórias, causos e lendas, o tempo havia ficado suspenso....vamos deixa a porteira aberta prá eles, entra...agora o tempo era todo meu.