terça-feira, 1 de abril de 2014


BRAVO, PACO! AVANTE!


POR ENILTON GRILL


TEXTO ESCRITO
EM 27 DE FEVEREIRO
UM DIA APÓS A MORTE 
DE PACO DE LUCÍA


"Um guitarrista tem de ter mais do que ritmo,
tem de ter ar. Ar é fundamental.
PACO DE LUCÍA
ALGECIRAS, 1947
CANCÚN, 2014

A MORTE



A notícia é de chorar. As mãos pararam de voar, os pés de bailar e o coração de tocar.  Faltou ar. Paco morreu, brincando com os filhos, na beira do mar. 

"Durante a noite morreu o pai, o irmão, o tio, o amigo, partiu o gênio Paco de Lucía,  Ele viveu como quis e morreu brincando com os filhos ao lado do mar", informou a família em um comunicado oficial.

“Payo de nacimiento, pero gitano de alma”, definiu o jornal El País. A frase refere-se a expressão (“payo”) usada pelos gitanos para designar quem não é cigano.

Paco nasceu em Algeciras, cidade de porte médio na região de Cádiz, que informou estar "chorando em silêncio pelo mais internacional de seus filhos".

“Nunca perdi a ligação com as raízes na minha música”, afirmou Paco de Lucía numa entrevista na década de 1990. “O que tentei fazer foi situar-me na tradição e, ao mesmo tempo, procurar noutros territórios coisas novas para o flamenco.” Anos mais tarde reafirmaria essa ideia.

"Não tenho medo que se perca a essência do flamenco", declarou em Agosto de 2004, depois de receber o Prémio Príncipe das Astúrias, distinção maior das artes e da cultura em Espanha. "Um guitarrista tem de ter mais do que ritmo, tem de ter ar. Ar é fundamental", declarou na mesma entrevista.

"A morte de Paco de Lucía transforma o gênio em lenda. Seu legado perdurará para sempre, assim como o carinho que sempre mostrou por sua terra. Apesar de ele ter partido, sua música, sua maneira genial de interpretar, seu caráter, sempre estará entre nós", afirmou o prefeito de Algeciras em um comunicado.

A morte repentina provocou várias reações. Os reis e os príncipes das Astúrias enviaram telegramas de condolências, informou a Casa Real. Destacando uma "figura única e insubstituível".

"Um um gênio com maiúsculas nos deixou", lamentou a presidência regional da Andaluzia. "É um golpe muito grande para o mundo do flamenco, do violão", disse o violonista Paco Cepero.

O município de Algeciras decretou três dias de luto oficial e convocou um minuto de silêncio em "memória do maior violonista de todos os tempos".

O ENTERRO


Rodeado de familiares e amigos e acompanhado por centenas de pessoas emocionadas, Paco de Lucía foi enterrado no cemitério de Algeciras, sua cidade natal no sul da Espanha, região da Andaluzia, onde nasceu o flamenco, após um emocionante funeral marcado pela magia do ritmo andaluz.

Antes do enterro, houve uma missa na igreja Nossa Senhora da Palma, onde familiares e amigos entoaram o "cante jondo" (canto profundo) para se despedir do músico que deu projeção mundial ao renovar e revitalizar o flamenco. Paco está para o flamenco como Piazzolla para o tango e Tom Jobim para o samba.


A VIDA


Francisco Sánchez Gómez, mais conhecido como Paco de Lucía, nasceu em 21 de dezembro de 1947, em Algeciras, cidade andaluza, da província de Cádiz, em uma família cigana. De sua mãe, Lucía Gómez, veio o sobrenome artístico, com o qual ficou famoso em todo o planeta ao modernizar o flamenco tradicional.

O violonista gostava de lembrar que devia a carreira ao pai, Antonio Sánchez, um cantor e guitarrista de flamenco desconhecido. Foi com seu pai e seu irmão Ramón que aprendeu a tocar violão.

"Os ciganos são melhores porque escutam a música desde que nascem. Se não tivesse nascido na casa de meu pai, eu não seria ninguém hoje. Não acredito no gênio espontâneo. Meu pai me obrigou a tocar violão desde que era criança", afirmou no livro "Paco de Lucía. Una nueva tradición para la guitarra flamenca".

Conta a lenda que seu pai o amarrava ao pé da cama em sua casa de Algeciras para impedir que o menino saísse e forçar a prática. "Não era assim, era mais psicológico. Ele perguntava 'durante quanto tempo você praticou?'. Eu respondia '10 ou 12 horas' e via sua cara de felicidade", afirmou Paco.

Com apenas onze anos de idade, fez a sua primeira aparição pública na Rádio Algeciras, e no ano seguinte recebeu um prêmio especial numa competição de flamenco em Jerez de la Frontera, acompanhado pelo seu irmão Pepe num duo: Los chiquitos de Algeciras..

O início precoce nos palcos flamencos, ambientes noturnos repletos de fumaça, permitiu que ganhasse dinheiro para ajudar a família. Mas aos 15 anos já colaborava em gravações de discos em Madri e, quando atingiu a maioridade, assinou contrato para o primeiro álbum.

PACO & CAMARÓN


Na época, conheceu outro músico talentoso, que virou um mito do flamenco moderno, Camarón de la Isla, que então com 15 anos acabara de desembarcar com seu talento na capital espanhola.

Foi em Madri que surgiu a mítica dupla El Camarón-De Lucía, que renovou o flamenco com purismo e virtuosismo e que se traduziu em mais de dez discos de estúdio, como "El Duende Flamenco" (1972) e "Fuente y Caudal" (1973).

A amizade foi imediata e os dois artistas foram grandes colaboradores até a morte, em 1992, de Camarón, conhecido pelos excessos e vítima de um câncer.

FRIDAY NIGHT IN SAN FRANCISCO


No final dos anos 1970, Paco de Lucia ganhou muita popularidade fora da Espanha por seus trabalhos com os guitarristas John McLaughlin, Al Di Meola e Larry Coryell.

Gravado durante a turnê americana em 1980, o álbum Friday Night in San Francisco capta toda a energia, técnica e musicalidade deste espetacular trio - Paco de Lucía, John Maclaughlin e Al di Meola -  no palco. Possivelmente, uma das mais influentes gravações de guitarra acústica de todos os tempos.

Ao saber da morte de Paco, Al di Meola escreveu: "Meu querido amigo se foi e nunca vamos esquecer seu importante legado! Meu anos com Paco foram incríveis e inesquecíveis! Vou sentir muito a sua falta."

CONCIERTO DE ARANJUEZ


Além de cruzar o flamenco com o jazz, Paco trabalhou também com blues, música hindu, salsa, bossa nova e ritmos árabes. Também ajudou a derrubar a fronteira entre música erudita e popular com registros históricos no Teatro Real.

Violonista formado na tradição oral e espontânea do flamenco, Paco passou a maior parte de sua carreira sem saber ler partituras. Em 1991, porém, aceitou o desafio de gravar o 'Concierto de Aranjuez', obra prima do compositor Joaquin Rodrigo, tocando violão ao lado da Orquestra de Cadaqués. Para isso precisou aprender a ler música formalmente.

O Concierto de Aranjuez é a obra espanhola mais interpretada no mundo. Paco foi um de seus grandes intérpretes. Conta a lenda que o próprio Joaquín Rodrigo, presente na gravação de seu Concierto de Aranjuez, teria dito que ninguém tocara a peça com tanta intensidade e paixão como Paco de Lucía.

Em 1991, quando gravou Concerto de Aranjuez, Paco já era considerado o grande revolucionário do flamenco e em sua discografia havia joias raras - 12 Canções de García Lorca, para guitarra, e um outro álbum em que interpretava Manuel de Falla.

PACO, SAURA E O FLAMENCO


"O flamenco é um dos gêneros musicais mais sofisticados e exigentes", afirmou Paco de Lucia numa entrevista em 2004. Ele considerava que o gênero foi "maltratado na Espanha, assim como no Brasil ou Cuba, países de uma riqueza musical extraordinária, onde as classes acomodadas sentem vergonha de seu folclore".

"Tudo que pode ser expressado com as seis cordas do violão está em suas mãos, que se animam com a emocionante profundidade da sensibilidade e a limpeza da máxima honradez interpretativa", disse alguém, certa vez e em algum lugar, sobre Paco de Lucía.

– Quando eu era pequeno, o flamenco era um gênero muito fechado, era "talibânico". Mudar uma nota era um sacrilégio – disse Paco de Lucía, em 2013, em uma entrevista ao jornal Zero Hora. – O que fiz foi abrir uma porta, para entrar novos ares, mas sempre respeitando a tradição. Fiz uma ponte entre a tradição e a modernidade.

Entre suas contribuições ao flamenco está a introdução da caixa de madeira - cajón peruano -  instrumento que os escravos africanos levaram ao Peru no século XVI e que o violonista conheceu durante uma viagem a Lima.

Costuma-se dizer que o flamenco capta a alma da Espanha como o tango, a da Argentina e o samba, a do Brasil. Identificado com a região da Andaluzia, o flamenco não é só uma música, mas também uma dança. Suas origens remontam a diferentes culturas - cigana, mourisca, árabe e judaica.

É um produto impuro, da miscigenação. Começou cantada, depois veio o acompanhamento de violão ou guitarra e, finalmente, a dança. Existe flamenco sem canto, mas sem toque e dança é difícil. É muito cinematográfico, e o cinema muitas vezes fez apelo a Paco de Lucía.

Entre outras participações, Paco apareceu em Carmen, a adaptação da tragédia clássica do ciúme (de Prosper Mérimée e Georges Bizet) por Carlos Saura. Antes disso, tocara em Bodas de Sangue, também de Saura, baseado em Lorca. Ainda colaboraria com ele em Sevillanas.

PACO & O BRASIL


Quando Paco de Lucia tinha 20 anos, foi tocar na TV e o apresentador anunciou: 'ele possui todos os segredos da guitarra espanhola.' Sentado num banquinho, com o violão nas mãos, o violonista acenou com a cabeça e começou a tocar sua versão flamenca do chorinho brasileiro 'Tico-Tico no Fubá.'

Desde ali, sua relação com o Brasil é muito próxima. 'Paco abriu as portas da música flamenca para o mundo', disse o guitarrista brasileiro Conrado Gmeiner, estudioso de flamenco que se apaixonou pelo ritmo ao ouvir uma 'rondeña' de Paco de Lucia, aos 16 anos.

No fim de 2013, o violonista, então com 65 anos, esteve pela oitava vez no Brasil. A série de quatro shows — dois no Rio, um em São Paulo e outro em Porto Alegre — marcou a volta do artista ao país, após uma ausência de 16 anos. Na ocasião, ele justificou a longa temporada sem apresentações em solo brasileiro com o nascimento dos filhos mais novos. Mas admitiu que já estava sentindo saudades.

Nas visitas anteriores, Paco tocou e gravou com músicos brasileiros e desafiou Chico Buarque para uma partida de futebol. Na primeira vez, em 1967, apresentou-se com o balé de Antonio Gades. Na segunda, em 1980, fez show solo na Sala Cecília Meirelles.

Mas para muitos brasileiros, Paco de Lucía apareceu pela primeira vez em uma gravação de Djavan, no fim dos anos 1980. "Oceano", de Djavan,  não seria a mesma sem um longo solo de guitarra do mestre do flamenco. "Tocar em 'Oceano' foi um acerto, porque me deu a oportunidade de conhecer um músico extraordinário, de uma originalidade que me emocionou", disse Paco, referindo-se a Djavan,  em sua última entrevista no Brasil, ano passado.

Logo que soube de sua morte, Djavan, emocionado, homenageou o espanhol na sua página da rede social.

— Paco foi o mais brilhante instrumentista que eu conheci. O violão em suas mãos transformava-se num instrumento fácil, intuitivo, apesar de toda a complexidade do seu canto. Paco sempre foi muito admirado pela técnica absurda que usava para expressar a delicadeza e a agressividade contidas na música flamenca, o que fez dele um músico inesquecível. Que Deus o ilumine, disse Djavan.

As boas memórias que Paco de Lucía levou do Brasil são muitas: de jantares com Tom Jobim no Plataforma (“Ainda está aberto?”) e de encontros com Raphael Rabello (“Um grande amigo e grande violonista, que eu adorava, chorei muito a sua morte”) e da música de Baden Powell (“Que ouvi quando eu era muito jovem e que me ajudou a tocar de outra maneira”). Agora, um novo astro do violão o intrigava.

— Ouvi muito falar de Yamandu Costa, mas ainda não escutei a sua música. Quando chegar aí vou perguntar quais seus melhores discos.

Yamandú Costa conheceu o artista espanhol quando os dois tinham shows marcados em Porto Alegre, e teve a honra de ser aplaudido de pé pelo mestre após uma apresentação. Yamandu lamentou a morte de Paco:

— Quem toca violão popular no mundo e não foi influenciado por ele?, questiona Yamandú. — Para mim, é uma tristeza muito grande. Eu o conheci há dois meses e meio, quando fui lançar um disco em Porto Alegre e ele estava fazendo um show. Ele é uma referência total para o violão popular em todo o mundo e nunca deixou de falar da terra dele, conseguindo universalizar a música regional.

OS PRÊMIOS


Nos anos 1990 gravou alguns discos e, após um hiato de cinco anos, em 2004 gravou "Cositas Buenas", considerado pela crítica uma "obra prima", com oito temas inéditos, acompanhado pelo violão de Tomatito e pela voz recuperada de Camarón, e que lhe rendeu o Grammy Latino de melhor álbum de flamenco.

No mesmo ano, 2004, o músico, que começou a carreira aos 12 anos e recebeu o título de Doutor Honoris Causa de universidades como a de Cádiz e Boston, foi o vencedor do Prêmio Príncipe das Astúrias das Artes.

Em 2011, participou em um disco de flamenco tradicional do músico Miguel Poveda. Tornou-se Doutor Honoris Causa pela Universidade de Cádiz e pelo Berklee College of Music de Boston (EUA, 2010).

O FIM


Paco de Lucia viveu nos últimos anos em Palma de Mallorca, após passar por lugares como a península de Yucatán e Toledo, onde se deixava ver (pouco), com uma mistura de cordialidade e reclusão. Chegou também a fixar residência em Cuba.

Os que conviveram com ele no período de Mallorca recordam uma certa aversão ao violão, que deixou de tocar por alguns anos, tentando compartilhar mais tempo com as pessoas comuns, se afastando de círculos artísticos e intelectuais e cuidando dos filhos mais novos.

Paco de Lucia passava temporadas em Cancún, no México, onde praticava pesca submarina. Ele jogava futebol com o filho, Diego, de dez anos, quando sofreu um infarto fulminante. O mundo chora. Morreu um grande. Morreu um gigante. Tinha 66 anos e muita arte adiante.

Bravo, Paco! Avante!