quarta-feira, 23 de outubro de 2013



PÁTRIA MINHA


POR ENILTON GRILL


DA BIOGRAFIA
VINICIUS DE MORAES
O POETA DA PAIXÃO
DE JOSÉ CASTELLO



Brasil. 13 de dezembro de 1968.

Nesse dia é decretado o ato institucional nº 5 – famoso e temido AI 5 – medida extrema do regime militar que lança o país numa longa e escura noite. Vinicius de Moraes está em Lisboa para uma apresentação ao lado da cantora Márcia e do parceiro Baden Powell. Os repórteres portugueses, embaralhando nomes e informações, conseguem lhe dizer o essencial. Fica sem reação. O olhar é distante.

À noite, mesmo abatido, cumpre seu papel no teatro. O show deve terminar, como sempre, com o “Canto de Ossanha”, uma das músicas mais famosas que compôs com Baden Powell. Portugal ainda está sob o regime férreo de Marcelo Caetano. A Rádio e Televisão Portuguesa manda uma equipe para o teatro para fazer uma gravação do show. Vinicius não se intimida.

Antes de começar o “Canto de Ossanha”, Vinicius interrompe o show: “Eu hoje gostaria de dizer a vocês umas palavras de muita tristeza”, começa. “No meu país foi instaurado, hoje, o ato institucional nº 5. Pessoas estão sendo perseguidas, assassinadas, torturadas. Por isso, quero ler um poema.”


O poeta abre um exemplar de sua Antologia poética, guardado sob a garrafa de uísque e, enquanto Baden Powell começa a dedilhar o Hino Nacional Brasileiro, lê: “A minha pátria é como se não fosse, é íntima/ Doçura e vontade chorar; uma criança dormindo/ É minha pátria. Por isso, no exílio/ Assistindo dormir meu filho/ Choro de saudades da minha pátria”.

Trata-se do magnífico “Pátria minha”, um dos mais belos poemas escritos por Vinicius de Moraes. A plateia se extasia diante de versos como esses: “Não te direi o nome, pátria minha/ Teu nome é pátria amada, é patriazinha/ Não rima com mãe gentil/ Vives em mim como uma filha que és/ Uma ilha de ternura: a ilha/ Brasil, talvez”.

A leitura de “Pátria minha” ficará na memória dos portugueses como uma das mais bem acabadas expressões que puderam conhecer do amor à liberdade. Na noite seguinte à Revolução dos cravos, alguns anos depois, a Rádio e Televisão Portuguesa, tomada pela euforia, recuperará o tape – perdido em seus arquivos – e o reprisará.

Naquela noite, à saída do show, tem que enfrentar uma pequena mas barulhenta manifestação de salazaristas indignados com seus discursos contra os horrores da ditadura. Os manifestantes fecham a saída dos fundos do teatro. Vinicius chega à porta e os encara. Alguém lhe sussurra o óbvio: “Vamos voltar e sair por um outro lado”. O poeta responde em tom seco: “Não”.


Vinicius fica algum tempo em silêncio. Depois, erguendo a voz e ainda encarando o pequeno grupo de direitistas, começa a recitar: “De manhã escureço/ De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De noite ardo”. São os versos de seu primoroso “Poética I”, poema que escreveu no distante ano de 1950, em Nova York. 

O poeta vai prosseguir, quando um sotaque brasileiro, escondido por detrás dos manifestantes – estudantes muito jovens e enraivecidos, a essa altura tontos com sua reação – prossegue: “A oeste a morte/ Contra quem vivo/ Do sul cativo/ O este é meu norte”.

Aquele estudante brasileiro, solitário em sua revolta, o salva. Os jovens salazaristas portugueses cedem à força da poesia. Os manifestantes, agora, já não podem mais gritar. Um ou outro tenta ainda emitir uma palavra de ordem sem sentido, mas a maioria silencia para ouvi-lo terminar: “Os outros que contem/ Passo por passo:/ Eu morro ontem/ Nasço amanhã”. 


E, elevando a voz ao máximo, Vinicius conclui: “Ando onde há espaço:/ - Meu tempo é quando”.

Um primeiro rapaz, mais corajoso, tira o casaco e o lança no chão, diante do poeta. Outros, logo, o imitam. Vinicius sai de cabeça erguida – e coração estraçalhado – sobre aquele tapete de casacos - estendidos por estudantes reacionários - para o poeta passar. A poesia acabara de colocar cada um em seu devido e merecido lugar.