sábado, 5 de outubro de 2013



NÃO VEJA A VEJA
VEJA O CHE


POR ENILTON GRILL


TEXTO ESCRITO EM
OUTUBRO DE 2007


Semanas atrás fui parado na rua: 
Tu 'viu' a última Veja? Fui ver a Veja. 
E recomendo: Não veja a Veja. Veja o Che.
ENILTON GRILL




Outubro de 1967. Há 40 anos, Che Guevara era assassinado, a sangue frio, num miserável povoado da Bolívia. Ele tinha 39 anos. 

Hoje uma revista diz que o Che real seria incapaz de compreender a vida em uma sociedade aberta.

O que essa revista não diz é que, muito antes que qualquer outro, o Che já nos advertia que a nova sociedade em formação tem de competir muito duramente com o passado.

A história é um rio veloz que não poupa obstáculos. O socialismo europeu tentou congelar as águas do rio com o burocratismo, o autoritarismo e a completa falta de humanismo. Mudanças radicais ocorreram nesses 40 anos. O Muro de Berlim caiu e soterrou o socialismo europeu.

A matéria dessa revista diz que o Che era aferrado, com unhas e dentes, à rigidez do marxismo leninismo em sua vertente mais totalitária.

Mas, muito antes da queda do do muro, em Argel, em 1962, Che já apontava as rachaduras nas muralhas do Kremlin. Muralhas que para muitos de nós pareciam sólidas e intransponíveis.

Quem sabe a história do socialismo fosse outra hoje se tivessem dado ouvido às suas palavras.


Disse o Che quando de retorno de uma viagem à antiga União Soviética: "Estamos todos convalescendo desse mal chamado sectarismo". Numa outra oportunidade, Che disse: "Não é possível destruir as opiniões na porrada e é isso precisamente o que mata todo o desenvolvimento livre da inteligência".

A revista tenta emplacar, também, a idéia de que Che era sedento por sangue. E que só pensava em matar.

Nada mais distante da verdade. O principal motivo de ter escolhido a medicina foi exatamente a necessidade intrínseca de salvar vidas. No início de sua peregrinação, ele atendeu pacientes nos leprosários mais longínquos e necessitados do continente. Sem cobrar nada em troca. A gratidão daquela gente era mais do que suficiente. 

Um dos pacientes, Isaías Silva, relata assim um diálogo dele com o Che: - Eu não atenderia um leproso nem por um milhão de dólares. Ao que o Che respondeu: - Eu também não. Porque a um leproso só se atende por amor.


Mas diz mais a revista. A revista diz que o Che sempre teve uma "maníaca necessidade de matar pessoas".

Mas, o que essa revista não diz, é que, os rebeldes, em plena selva, montaram um consultório médico. Só um era médico entre eles. Esse médico, mais de uma vez, atendeu caravanas de crianças barrigudas e moças velhas e homens que eram como pelancas secas e vazias... O nome desse médico era Ernesto. Mas podem chamar de Che.

O mesmo Che, que, da África, em 1965, escreveu ao diretor do jornal Marcha de Montevidéu: "Deixe-me dizê-lo, sob o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor".

Outra coisa que essa revista diz é que o Che foi alguém cuja vida, "exceto na revolução cubana, foi uma seqüência de fracassos".


Mas, o que a revista não diz, é que, àquilo que se propôs na vida, o Che foi um grande vitorioso. Viver é se dar, acreditava ele. E ele se deu. E foi nesse projeto de vida que ele viveu, venceu e morreu.

"Os sinos dobram por ele", escreveu o escritor Eduardo Galeano. "Tristeza na morte de um herói", disse e escreveu o poeta Pablo Neruda.

"Atire, covarde, você só vai matar um homem". Como cabe a um herói, o minuto final, antes de tronar-se mito e passar para a eternidade, foi encarado com o olhar sereno e altivo. Um olhar de quem via amor e liberdade. Um olhar de quem via esperança. Quem não quiser ver que não veja.