Facundos para o mundo
La Plata,
22 Maio 1937
Cidade da Guatemala,
09 Julho 2011
por Enilton Grill
Texto publicado no
Diário da Manhã
Diário da Manhã
09 de julho de 2011
Pelotas, Rio Grande do Sul
Facundo Cabral nasceu em La Plata, província de Buenos Aires, sem data certa e precisa - supõe-se que tenha sido dia 22 de maio -, e com outro nome, Rodolfo, o nome de seu pai.
Um dia antes de seu nascimento, seu pai deixou a casa largando a mulher - Sara - com sete filhos, que emigraram para a Terra do Fogo, no sul da Argentina.
A dificuldade financeira e a impossibilidade de sustento obrigaram Sara a ir mudando de lugar e cidade. Levou nove anos cruzando o deserto, com os sete filhos pela mão. No meio do caminho, ante a pergunta de um deles sobre a razão de não terem uma casa pra morar, Sara respondeu: "Os outros têm só uma casa pra morar, nós temos o mundo para andar, segue andando".
Quando enfim cruzaram o deserto e chegaram à Patagônia, o menino Facundo decidiu voltar a Buenos Aires. Tinha então nove anos de idade.
—Era o ano de 1946, Perón recém havia assumido e eu havia escutado que ele daria trabalho a quem necessitasse. Fui pedir trabalho a quem prometia trabalho.
Durante uma visita de Perón a La Plata, o pequeno Facundo pediu trabalho ao general. A atitude do menino chamou a atenção de Evita: "Enfim alguém que pede trabalho e não esmola". Logo encarregou a um de seus assessores que cuidasse da criança.
-Me levaram a uma escola em La Plata. Tomei banho, me deram roupa nova, e me trataram como se estivesse chegando hoje em um hotel cinco estrelas.
No dia seguinte estava em Buenos Aires. Eva Duarte Perón atendeu o menino em seu escritório. Poucas horas depois, estava num avião de volta à Patagônia.
-Quando cheguei, minha mãe parecia não acreditar. Me havia dado por perdido; e três meses mais tarde apareci num avião e com uma carta pessoal de Eva Perón. A carta oferecia trabalho de zeladora à minha mãe numa escola de Tandil, ao sul da província de Buenos Aires.
Ao longo da vida, rica em reportagens e entrevistas, Facundo contou várias vezes a mesma história. Mas sempre de forma diferente. Às vezes, a viagem ao sul é feita de trem. Às vezes ele vai sozinho e em outras é levado pela mãe.
De qualquer forma, as versões que Facundo Cabral conta de sua infância coincidem nos temas centrais (a jornada precoce rumo à capital e o amor incondicional pela mãe) e no fato de que estão muito bem contadas. E isso é o bastante para dá-las como verídicas. Ao menos é o pacto que ele nos propõe para que entremos em seu mundo.
De tudo isso, o certo é que a dor da mãe vai transformar Facundo Cabral em um jovem problemático e rebelde.
As brigas e os pequenos delitos levaram-o mais de uma vez às prisões. Em uma delas é recebido por um jesuíta, que decide alfabetizá-lo.
Dois anos e meio mais tarde, quando Facundo já havia aprendido as lições, e podia defender-se na vida com algo mais que socos e pontapés, o próprio jesuíta ajudou-o a fugir da prisão.
Nas suas andanças posteriores pela costa bonaerense, Facundo Cabral conheceu um mendigo que o iniciou no evangelho. Desde então, Jesus, os profetas e a Bíblia ocuparam, dentro de seu imaginário, o mesmo lugar que filósofos e escritores, aos quais também começou a conhecer por essa época.
Na cidade, trabalhou de engraxate. No meio rural, conheceu a milonga e os milongueiros. E isso viria marcar a ferro e fogo seu futuro artístico.
- "O dia que conheci o maior deles, Pedro Mendizábal, soube que esse seria era meu ofício”.
Enquanto isso, sua tendência anarquista, herdada de sua avó, o levava a ser demitido e expulso do trabalho continuamente.
—Eu queria fazer a revolução e repetia a frase de Proudhon que eu trazia gravada desde pequeno:
“Toda propriedade é um roubo”.
Em outra ocasião, diria: “Estoy forzado a robar porque he llegado muy tarde, desde antes de nacer las cosas eran de alguien. Si me gusta una mujer está de novia o casada, si soy ladrón es por culpa de la propiedad privada."
“Toda propriedade é um roubo”.
Em outra ocasião, diria: “Estoy forzado a robar porque he llegado muy tarde, desde antes de nacer las cosas eran de alguien. Si me gusta una mujer está de novia o casada, si soy ladrón es por culpa de la propiedad privada."
Em meados dos anos 1960, passou um largo tempo fora da Argentina, primeiro na Ilha de Páscoa e depois em Cuzco.
—Na Ilha de Páscoa a única coisa que eu fazia era ler Lao Tsé e Whitmann. Em Cuzco, além disso, visitei várias vezes o bordel.
No final dos 60, compôs sua canção mais conhecida: “No soy de aquí ni soy de allá”.
Adepto de Diógenes, não acumulou nenhum tipo de bem material. Acreditava que quem tem menos é mais livre e mais feliz: “Tener menos para tenerse más”.
Em 1978, sua mulher, e sua filha (de um ano de idade) morrem em um acidente de avião. O choque foi tão grande, que ele desaprendeu a caminhar e a falar: "Me olvidé de todo, de hablar, de los idiomas que sabía, de caminar, y cuando volví a la realidad, solo podía hablar español, y la piernas me dolían. enmudecí de dolor". Durante dois anos, esqueceu os oito idiomas que falava. Ficou meses prostrado e deprimido, arrasado e desiludido. ficou quase cego, quase morreu.
Madre Teresa, ao inteirar-se do drama, convidou-o a segui-la: “ ¿Dónde vas a poner el amor que te va a sobrar?”. Em Calcutá, banharam leprosos e tiraram das ruas centenas de crianças abandonadas. E Facundo voltou a amar. Voltou a confiar na vida como o dia confia na noite e a noite na chuva e a chuva no vento. E então escreveu seu testamento: "Amo y señor de mí mismo, sin bandera y sin espada, al viento devolveré, las maravillas prestadas".
Cantou em mais de 160 países. Conheceu o mundo.
Morreu assassinado a tiros, quando se dirigia para o aeroporto, após ter realizado dois concertos em Quetzaltenango, na Guatemala.
*Autor deste blog, radialista, pesquisador e ativista cultural