domingo, 12 de agosto de 2012


LIXO LÓGICO


_ POR CAETANO VELOSO


Novo álbum de Tom Zé é o melhor disco desde seu renascimento

São cidades já pensadas de uma perspectiva (a palavra vem bem a calhar) renascentista. É verdade, como nós sentimos desde sempre (e Risério também explica em seu livro), as cidades racionais imaginadas pelos colonizadores terminavam sempre repetindo algo das cidades reais da metrópole, as quais eram ainda labirínticas, à moda medieval, sendo que as portuguesas ainda o eram mais, por causa da influência árabe.

Mas para os santamarenses e a soteropolitana as formas mentais sertanejas eram remotas. Não tínhamos o repentista, o cordelista ou o aboiador em voz de alcance. E palatalizávamos os dês e os tês antes do i.

Essas sutis diferenças me vêm à cabeça ao ouvir “Tropicália, lixo lógico”, o disco novo de Tom Zé.

Quando compus “De manhã”, embora me tivesse deixado levar pelo modalismo nordestino (tão em moda sobretudo por causa de Edu Lobo), eu mais resignei-me a aceitar essa tendência do que a achei dentro de mim.

Ao contrário, eu queria poder ter feito algo que mantivesse a natureza do samba de roda, nunca modal, sempre pensado em termos de tônica/dominante/subdominante.

Pois bem, o que apaixona Tom Zé nessa canção é justamente o modalismo — na verdade, o uso a seu ver original de fórmulas modais.

“Tropicália, lixo lógico” é o melhor disco de Tom Zé desde que ele renasceu artisticamente, convidado a sair do esconderijo para onde nós o empurráramos nada menos do que por David Byrne, o mais elegante de todos os roqueiros.

Num documentário, Byrne diz que, além de tudo, Tom Zé era quem estava, dentre os artistas brasileiros de que ele teve notícia, propriamente identificado com a vanguarda do sul de Manhattan.

David é o homem a quem devemos “Fear of music”. Felizmente é também impagável a dívida que temos com ele pela revelação de Tom Zé ao mundo. Os discos que este fez desde então confirmam a impressão provocada no americano.

Mas neste “Lixo lógico” temos mais concentrado do que nos outros o efeito cômico-sério extraído da abordagem simultaneamente eruditíssima e pop que ele consegue, de que a análise espetacular de “Tô ficando atoladinha” é um exemplo perfeito.

Qualquer um pode ver no YouTube. Referindo-se a seu disco “Danç-Eh-Sá” (e também aos círculos concêntricos de influência da bossa nova), Tom Zé demonstra por que “tô ficando atoladinha” é um “metarrefrão microtonal e polissemiótico”.

Como ali, na tese do “lixo lógico” surge a informação séria que se sabe cômica em seu deslocamento. Como pedir cachaça no avião (em 1968: hoje, cachaça, confirmando o profeta Tom Zé, é assunto de presidente dos Estados Unidos).

E o tom com que os aspectos sensatos e os aspectos histriônicos são alternada ou concomitantemente revelados é a força artística de Tom Zé. Aqui mostrando-se rica como nunca, nas menções meio ocultas a nomes, timbres e cadências da época. E de agora. Talvez a intensidade com que isso acontece se deva ao tema ser a Tropicália.

Diferentemente da bossa nova, a Tropicália é coisa de Tom Zé. Não só ele fez parte do movimento: ele realizou as obras mais ambiciosas no sentido de caracterizá-lo. É como se Gil, eu, Sérgio Dias e Rita Lee tivéssemos cada um partido para algo livre do projeto inicial: Tom Zé ficou com as questões centrais.

E a biografia da Tropicália que ele apresenta nessa nova obra tem muito de autobiografia. Em Santo Amaro, eu vivia na periferia do Rio de Janeiro. Santo Amaro era urbana até a medula. Essa versão radical da Tropicália como o choque entre uma mente pré-aristotélica e a terceira revolução industrial é fascinante. Não me ocorreria tal versão.

Mas a Tropicália fica belíssima assim tratada nas canções, sons e intenções do CD de Tom Zé.

A minha própria pergunta íntima sobre o tema muda de tom: o modalismo de “De manhã” me aparece mais entranhado do que eu supunha. E eu o encontro mais próximo da Tropicália do que sempre cri.

Uma vez falei com Tom Zé no telefone sobre isso. Mas o disco me convenceu mais. Veja o que é a força do estilo.