domingo, 15 de janeiro de 2012



OS DICIONÁRIOS DE MEU PAI


POR CHICO BUARQUE













PARA A REVISTA PIAUÍ
JUNHO/2010



Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. 
 
Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas em que eu o folheava à toa; o amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto.

Palavra puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo (desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria). O resultado é que o livro, herdado já em estado precário, começou a se esfarelar nos meus dedos. Encostei-o na estante das relíquias ao descobrir, num sebo atrás da Sala Cecília Meireles, o mesmo dicionário em encadernação de percalina. Por dentro estava em boas condições, apesar de algumas manchas amareladas, e de trazer na folha de rosto a palavra anauê, escrita a caneta-tinteiro.

Com esse livro escrevi novas canções e romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas. E ao vê-lo dar sinais de fadiga, saí de sebo em sebo pelo Rio de Janeiro para me garantir um dicionário analógico de reserva. Encontrei dois, mas não me dei por satisfeito, fiquei viciado no negócio. Dei de vasculhar livrarias país afora, só em São Paulo adquiri meia dúzia de exemplares, e ainda arrematei o último à venda na Amazon.com antes que algum aventureiro o fizesse. 
 
Eu já imaginava deter o monopólio (açambarcamento, exclusividade, hegemonia, senhorio, império) de dicionários analógicos da língua portuguesa, não fosse pelo senhor João Ubaldo Ribeiro, que ao que me consta também tem um, quiçá carcomido pelas traças (brocas, carunchos, gusanos, cupins, térmitas, cáries, lagartas-rosadas, gafanhotos, bichos-carpinteiros).

A horas mortas, eu corria os olhos pela minha prateleira repleta de livros gêmeos, escolhia um a esmo e o abria a bel-prazer. Então anotava num Moleskine as palavras mais preciosas, a fim de esmerar o vocabulário com que eu embasbacaria as moças e esmagaria meus rivais.

Hoje sou surpreendido pelo anúncio desta nova edição do dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sinto como se invadissem minha propriedade, revirassem meus baús, espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se para mim de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável, dilacerante, miseranda) notícia.
Chico Buarque de Hollanda



CHICO, SÉRGIO E AURÉLIO
BUARQUE DE HOLLANDA














FRAGMENTO DE ENTREVISTA
PUBLICADA NO Nº168 DA REVISTA AFINAL,
DE 17 DE NOVEMBRO DE 1987.


Afinal - Quando você sacou que seu pai era genial? Ou você ainda não sacou isso?
Chico - É meio difícil falar de pai...


Afinal - Mas você leu a obra de seu pai?
Chico - Tive dificuldade Resisti muito. Engraçado, isso é uma coisa que não dá nem para explicar, mas resisti muito. Até que uma vez eu cheguei pra ele e disse: "Eu estou lendo Raízes do Brasil". E ele disse: "Leia Visão do Paraíso, que é muito melhor, eu gosto muito mais". Mas é muito difícil falar sobre isso que você está me pedindo. Eu não tenho essa isenção para julgar meu pai e dizer que meu pai era genial. Eu sou incapaz de falar isso, porque há tantos sentimentos misturados aí. Eu o li, com dificuldade inclusive, depois de ele ter morrido. Porque eu parava em determinado parágrafo e ficava pensando nele, entende? Ficava na ligação, no meu contato pessoal com ele, e essas coisas se misturam quando leio seus livros.


Afinal - Como é que era o seu relacionamento com o seu pai?
Chico - Genial! (risos) Quando eu era pequeno meu pai era um cara que metia medo, porque ele trabalhava muito e eu fazia muito barulho e ele não gostava de barulho e tal. Ele ficou meu camarada, meu amigo, já na minha adolescência, quando comecei a dar sinal de independência, porque meu pai não tinha ligação com criança, não era do jeito dele. Ficou próximo, ficou meu camarada, até no sentido de cumplicidade, quando eu virei homem...


Afinal - Mas nunca puxou o saco assim: "Ah, meu filho!"
Chico - Não, mas de jeito nenhum. Imagina meu pai me puxar o saco (risos). Imagina, e meu pai ia ficar incomodado ou deslumbrado com o meu sucesso, mas de jeito nenhum. Ele devia achar meio engraçado, devia ficar às vezes um pouco orgulhoso disso ou daquilo. Ele não dava muito palpite na verdade. Às vezes, quando tomava um pilequinho, ele deixava escapar alguma coisa, mas ele nunca interferiu não.


Afinal - Você acha que seu pai cresceu ainda mais tendo um filho como você?
Chico - Eu não posso falar isso para você. Quer saber o que meu pai achava de mim? É isso? Pois bem, dessas coisas não se falava em casa, tem coisas que não se diz. Ficava quieto, mas havia aquela cumplicidade, aquela coisa. Agora tem uma coisa gozada: eu fui criado com muitas pessoas me perguntando se eu era filho do Aurélio. Eu fiquei com horror dessa história de ser filho do Aurélio o tempo todo "Você é filho do dicionário?" (risos) Daí um dia eu dei uma entrevista pro Pasquim e falei que não tinha nada com o Aurélio, que ele nem era meu parente...Depois um tio meu me esclareceu que realmente ele é meu parente, um parentesco distante, mas é. Mas tem gente que acha que eu sou filho mesmo é do Aurélio, e não do Sérgio Buarque de Holanda. E o chato é que o Aurélio sempre vendeu mais livros do que meu pai (risos). Há algum tempo eu estava fazendo um programa na Rede Manchete e aí passa o Adolpho Bloch e diz: "Ah, Chico Buarque, como é que vai seu pai? Eu gosto muito dele, eu o vejo sempre lá na Academia". (risos). Meu pai já tinha morrido e eu fiquei assim sem clima para dizer. Quer dizer, o Adolpho Bloch pensa que eu sou filho do Aurélio.


Afinal - Se você sempre insistiu em dizer que seu pai era Sérgio Buarque de Holanda é porque você já tinha sacado que tinha um pai genial. Ou não?
Chico - Não vou entrar por aí. Talvez saia pela tangente. Vou dizer o seguinte: é um pouco difícil julgar meu pai, o intelectual com essa frieza, com essa distância. Vou dizer que eu fui tendo aos poucos, e cada vez mais, uma consciência da dignidade dele como ser humano. Aí é uma coisa que me marcou mais que qualquer outra, é uma coisa que, aí sim, me marcou para sempre. Quer dizer: eu sou filho de Sergio Buarque de Holanda e eu tenho que fazer jus a esse nome.


Afinal - Você tem idéia do que você se transformou na cultura brasileira?
Chico - Não, porque esse é o tipo de balanço de vida que eu não faço, balanço de obra. Eu não escuto nem mesmo as minhas musicas. Às vezes, na rua, alguém grita: "Ô, Chicão, Ô Chicão, tudo certo"? É um chofer de ônibus, que provavelmente não tem o meu disco e sabe vagamente quem eu sou. E isso é uma coisa boa. Mas essa coisa de "aaahhh", de "aue" no meio da rua nunca me seduziu.


Afinal - Chico, por que você não virou um bundão? (risos).
Chico - Aí vai voltar ao meu pai, de novo; vai voltar aos valores que eu conheci. Quando eu falo do meu pai eu vou sem querer para Carlos Drummond, eu vou para Antonio Candido, vou para Manoel Bandeira, vou para Mario de Andrade, e vou para Vinicius de Moraes, e vou para Tom Jobim. Vou para os meus amigos, para as pessoas que eu respeito, e vou para o meu pai, que eu não posso decepcionar.